Impossibilidade de desocupação de imóveis / COVID-19 O que tinha o legislador em mente?
A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, que procedeu à aprovação de medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS -CoV-2, agente causador da doença COVID-19, criou um regime extraordinário e transitório de protecção dos arrendatários, nos termos do qual se considera suspensa a produção de efeitos das denúncias de contratos de arrendamento habitacional e não habitacional comunicadas pelo senhorio, conforme decorre do art.º 8.º, alínea a), do supra referenciado diploma.
O Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro (doravante NRAU), volta assim a ser objecto de alterações, ainda que de carácter extraordinário e transitório, as quais, mais do que nunca, se justificam atenta a situação epidemiológica que se vive, sendo a protecção conferida aos arrendatários de enaltecer, em virtude das dificuldades e constrangimentos que a cessação dos contratos neste período provocaria.
A norma em causa, aparentemente simples, levanta, desde logo, a questão sobre qual será o alcance do termo “denúncia” empregue pelo legislador, se tivermos em consideração o sentido técnico-jurídico que a palavra em causa assume hoje no âmbito do NRAU.
Com efeito, e sem prejuízo da celeridade que se impõe ao legislador em virtude do drama actual, a falta de rigor no uso de certos vocábulos jurídicos apenas cria dificuldades de interpretação, que se consideram dispensáveis quando a matéria em causa – evitar a cessação dos contratos de arrendamento por iniciativa do senhorio durante este período – poderia ser tratada de forma muito mais simples e clara.
Tendo presente a redacção utilizada pelo legislador, a grande dúvida que se coloca ao leitor e intérprete é se a palavra “denúncia” deverá ser entendida no seu efectivo significado jurídico ou se abrangerá, igualmente, outras figuras próximas de cessação do contrato de arrendamento, mormente, a oposição à renovação automática.
E a dúvida, legítima, surge se tivermos presente todos os tipos de contrato de arrendamento que hoje poderão estar vigentes, fazendo o exercício de aos mesmos aplicar a tal denúncia por parte do senhorio.
A verdade é que esse exercício prático leva-nos a concluir desde já que seriam muito residuais as situações em que o senhorio poderia, de facto, lançar mão da faculdade de denunciar os contratos de arrendamento.
A distinção entre denúncia e oposição à renovação tornou-se clara com o NRAU, sendo a oposição exclusiva para os contratos de prazo certo e reservando-se a denúncia, em regra, para fazer cessar os contratos de duração indeterminada (sem prazo).
Assim, parece-nos que o legislador usou a palavra denúncia de forma imprópria, não tendo em consideração o sentido técnico que esta assume hoje. Se assim não fosse, a suspensão de efeitos prevista na lei apenas diria respeito a número muito reduzido de situações, na medida em que a denúncia, enquanto forma de cessação do contrato, tem uma aplicação muito limitada, solução que não nos parece corresponder ao que terá sido a exacta intenção do legislador.
Com efeito, podemos identificar, em termos genéricos, 3 grandes “grupos” de contratos.
No primeiro, os denominados contratos vinculísticos, inserindo-se neste tipo todos os contratos habitacionais celebrados em momento anterior à entrada em vigor do RAU (aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15-10), e os não habitacionais celebrados em momento anterior à entrada em vigor do DL n.º 257/95, de 30-09. No que respeita a estes contratos, sujeitos ao regime da duração indeterminada, importa não esquecer o previsto nas normas transitórias constantes do NRAU, designadamente o art.º 28.º, n.º 2, nos termos do qual se encontra afastado o direito de denúncia, não se aplicando, portando, a estes contratos o disposto na alínea c), do art.º 1101.º, Código Civil (denúncia com pré-aviso de 5 anos).
Num segundo grupo, os contratos celebrados no período compreendido entre a entrada em vigor dos enunciados diplomas e a entrada em vigor do NRAU, que poderão ser de prazo certo (à data designados de duração limitada), mas também vinculísticos (sujeitos ao regime da duração indeterminada), quando celebrados em detrimento da exigência na altura imposta para os contratos com prazo – previsão expressa no sentido de o contrato ser celebrado ao abrigo do regime da duração limitada, exigindo-se o prazo mínimo de 5 anos.
Se para os contratos com prazo certo é inquestionável que a denúncia por parte do senhorio se encontra vedada, já para os sujeitos ao regime da duração indeterminada aquela será possível em casos pontuais, conforme resulta da alínea c), do n.º 4, do art.º 26, do NRAU (quando os arrendatários tenham idade inferior a 65 anos ou não tenham qualquer tipo de deficiência, ou tendo-a, que a mesma corresponda a um grau de incapacidade inferior a 60%).
No terceiro e último grupo, os contratos celebrados na vigência do NRAU. Quanto a estes, se destinados a habitação e com prazo certo, encontra-se afastada a possibilidade de denúncia por parte do senhorio, sendo-lhe somente facultada a possibilidade de se opor à renovação automática. Assim, a única hipótese de denúncia verifica-se nos contratos celebrados por duração indeterminada, tipologia pouca utilizada.
Já no âmbito dos contratos de arrendamento não habitacionais, determina o art.º 1110.º-A do CC, recentemente aditado pela Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, que a denúncia se encontra bastante limitada (apenas em casos de demolição ou realização de obras de remodelação ou restauro profundos, que obriguem à desocupação do locado, desde que não resulte local com características equivalentes às do locado, onde seja possível a manutenção do arrendamento; ou mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a cinco anos sobre a data em que pretenda a cessação), obrigando, nestes casos, ao pagamento por parte do senhorio de indemnização ao arrendatário e trabalhadores do estabelecimento pelos prejuízos que, comprovadamente, resultem da cessação do contrato de arrendamento.
Atendendo à realidade actual, em que os contratos com prazo certo serão, certamente, em maior número e relativamente aos quais se encontra vedado (no caso dos habitacionais) ou quase vedado (no caso dos não habitacionais) o direito de denúncia, atrevemo-nos a dizer que, em bom rigor, a suspensão dos efeitos aludida na alínea a), do art.º 8.º, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, ocorrerá no caso de oposição à renovação automática comunicada pelo senhorio, tendo o legislador utilizado o termo “denúncia” com o tal sentido técnico que a mesma tinha antes da entrada em vigor do NRAU (operava os seus efeitos no final do prazo, inicial ou de renovação, em curso).
Acresce que, para além de o legislador ter usado o conceito denúncia de forma imprecisa, a mesma deve ser interpretada no sentido de abranger outras formas de extinção do contrato, designadamente, a caducidade, que ocorre findo o prazo estipulado pelas partes ou estabelecido por lei. Também nestes casos, e porque o objectivo primordial da protecção dos arrendatários deverá estar presente, dever-se-á considerar suspensos os efeitos de tal forma de cessação do contrato, caso contrário deixaria o legislador sem solução situações substancialmente idênticas, o que não se compreenderia.
Dado que o principal propósito do legislador foi claramente o de impedir a cessação dos contratos de arrendamento habitacionais e não habitacionais no decurso deste período excepcional, cremos, pois, que a suspensão dos efeitos ocorrerá independentemente da forma de cessação a que o senhorio tenha recorrido (denúncia ou oposição à renovação automática do contrato), mas, também, nos casos de caducidade, pelo que, ainda que a “fórmula” utilizada pelo legislador se considere pouco precisa ou clara, deverá ser entendida de maneira mais abrangente, pois só assim se atingirá o objectivo delineado.
Mas as medidas, entretanto, aprovadas e publicadas vão para além da problemática em torno do significado da palavra denúncia utilizada pelo legislador, justificando, por conseguinte, uma outra reflexão de carácter mais profundo e articulado, no sentido de se questionar se tais medidas serão apenas aplicáveis aos contratos de arrendamento.
A este propósito, importa, aqui, referenciar, o Decreto n.º 2-A/2020,de 20 de março, que procedeu à execução da declaração do estado de emergência efectuada pelo Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março.
No âmbito deste diploma, e tendo presente a particularidade da matéria em análise, assume especial relevância o estatuído no art.º 10.º, cuja epígrafe é: “Efeitos sobre contratos de arrendamento e outras formas de exploração de imóveis”.
Conforme resulta desta disposição legal: “O encerramento de instalações e estabelecimentos ao abrigo do presente decreto não pode ser invocado como fundamento de resolução, denúncia ou outra forma de extinção de contratos de arrendamento não habitacional ou de outras formas contratuais de exploração de imóveis, nem como fundamento de obrigação de desocupação de imóveis em que os mesmos se encontrem instalados.” (sublinhado nosso).
Este artigo transporta-nos para outra complexidade, na medida em que apresenta claramente uma previsão mais ampla. Sem prejuízo da referência expressa ao arrendamento não habitacional, na realidade vai para além daquele tipo contratual e respetivo regime, compreendendo todas as formas contratuais de exploração de imóveis, ainda que não as concretize, e todas as formas de extinção.
Assim, e porque o elemento sistemático não deve ser desconsiderado, diríamos que o legislador não só usou o conceito de denúncia de forma imprecisa na alínea a), do art.º 8.º, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, como limitou de maneira incompreensível a previsão da norma ao fazer apenas referência a contratos de arrendamento, se tivermos em consideração o alcance do previsto no artigo 10.º supra citado.
Nos dias que correm, a figura “arrendatário” deve libertar-se da sua enraizada conotação, devendo antes ser entendida no sentido de considerar qualquer pessoa, singular ou coletiva, que, independentemente, da base contratual, se encontre no uso e gozo de determinado imóvel, mediante a correspetiva prestação.
Com efeito, não nos parece razoável que o legislador proteja, pura e simplesmente, a manutenção do contrato de arrendamento, ao impedir os efeitos das denúncias, excluindo desse âmbito de protecção outros contratos com objecto semelhante, que hoje vão cada vez mais assumindo posição de destaque na realidade socioeconómica.
Exemplo paradigmático deste tipo de contratos é o contrato de cedência de utilização de loja, o qual entendemos que se deverá considerar incluído na previsão do art.º 10.º, quando se refere “(…) ou de outras formas contratuais de exploração de imóveis (…).”
Destarte, da articulação das duas disposições legais supra citadas, a outra conclusão não se poderá, salvo melhor opinião, chegar que não seja a de que todos os contratos, tipificados ou não, que regulem o uso e gozo de imóvel com fim habitacional ou não habitacional, estarão protegidos pelas medidas que procedem à execução do estado de emergência, pelo que os efeitos, independentemente da forma de cessação, dever-se-ão considerar suspensos.
Com efeito, as medidas tomadas com o intuito de salvaguardar a manutenção de certos vínculos fundamentais para a redução da instabilidade social e económica, só podem ser entendidas e eficazes se forem transversais a todos estes tipos de contratos que, na sua substância (uso de gozo de imóvel), se considerem similares, sob pena de, salvo melhor opinião, tais normas, de índole restrita, violarem o princípio da igualdade, constitucionalmente previsto, por não tratarem questões substancialmente idênticas da mesma forma.
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