A necessidade de recuperação financeira das empresas no Pós COVID-19, por Manuel Camarate Campos
A situação de emergência de saúde pública causada pela epidemia da doença COVID-19 e as medidas extraordinárias e urgentes de restrição de direitos e liberdades, em particular no que se refere aos direitos de circulação e às liberdades económicas na sequência da decretação do estado de emergência pelo Decreto do Presidente da República nº 14-A/2020, de 18 de Março, já renovada, veio trazer a nu as fragilidades do tecido empresarial português, especialmente no que toca às pequenas e médias empresas.
Com muitas empresas do pequeno comércio encerradas ou com a actividade suspensa por força de determinação legal e com indústrias com fortes reduções de actividade por força das dificuldades na obtenção de matérias primas ou do cancelamento ou redução de encomendas, o recurso ao designado lay off simplificado, por cerca de 66.000 empresas segundo o ministro da Economia, a concessão de uma moratória no pagamento de créditos às instituições financeiras até 30 de Setembro de 2020, ou as linhas de crédito abertas com garantia do Estado, ainda que injectem oxigénio na economia, que permite que as empresas possam sobreviver no curto prazo, não são garantia de que as mesmas consigam manter-se no regresso à actividade – que, já se percebeu, será sempre gradual e faseado, enquanto não existirem medicamentos e, sobretudo uma vacina, que permita combater o vírus de forma eficaz.
Torna-se deste modo, fundamental, encontrar soluções que permitam a recuperação financeira das empresas, com o levantamento da restrições, evitando que todo o esforço que os seus proprietários e gestores estão a fazer, acompanhado pelo enorme esforço financeiro do Estado nas medidas de apoio que consagrou, não venha a revelar-se absolutamente inútil, com a queda de milhares de empresas em situação de insolvência.
Para tanto, para além da necessidade de reforço dos mecanismos preventivos da insolvência já previstos no n/ ordenamento jurídico – o Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas (RERE); o Processo Especial de Revitalização (PER) -, nomeadamente mediante a transposição, com as devidas adaptações à realidade portuguesa, da chamada “nova directiva da insolvência” – Diretiva (UE) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019 e que altera a Diretiva (UE) 2017/1132 –, torna-se mister encontrar os caminhos que, em substância, permitam viabilizar a actividade empresarial, permitindo, a um tempo, que as empresas a mantenham e projectem a sua recuperação e que os credores reforcem a expectativa de recuperação dos seus créditos.Exige-se, em suma, definir os principais traços do desenho da recuperação financeira das empresas, na sua relação com fornecedores, instituições de crédito e Estado.
Na generalidade dos casos, não está, não pode estar em causa a gestão das empresas que venham a revelar, após este período excepcional de apoios, maiores dificuldades no cumprimento das suas obrigações: a crise que vivemos tem uma causa exógena e imprevisível que a todos apanhou desprevenidos.
Deste modo, as questões principais que urge responder no pós COVID-19 são:
- Como poderá continuar a ser acautelada a continuidade dos fornecimentos e o apoio dos fornecedores?
- Como poderão ser ajustados os financiamentos recebidos ou recebidos novos financiamentos pelas empresas?
- Como poderá o Estado continuar a contribuir para a recuperação do tecido empresarial português?
Tradicionalmente, a recuperação financeira das empresas centra-se na celebração de acordos de reestruturação do respectivo passivo, mais ou menos complexos, junto das instituições financiadoras, seja mediante a renegociação dos financiamentos em curso seja mediante a concessão de novos financiamentos, por regra acompanhados de reforço de garantias. Sem preocupação de ser exaustivo, exemplificam-se algumas das medidas que tais acordos contemplam:
- Extensão de prazos de financiamentos em curso, com liquidação parcial (v.g. mediante dação de bens em cumprimento) ou, ao invés, capitalização de juros, ou ainda com reforço do financiamento;
- Novos financiamentos para alívio de tesouraria ou completar de projectos da empresa;
- Alteração (desejavelmente, desagravamento) de taxas de juro dos financiamentos;
- Períodos de carência no pagamento de capital e, com menos frequência dos juros;
- Criação de obrigações específicas, não pecuniárias – v.g. definição de covenants financeiros, como rácios de dívida e objectivos para a sua redução futura;
- Reforço de garantias reais e pessoais;
- Reforço de cláusulas especiais de garantia (cross default, ownership, negative pledge, pari passu, stand still); etc.
Os acordos de reestruturação de créditos com instituições financeiras serão tanto mais difíceis de concretizar quanto mais adiantada estiver a incapacidade da empresa para fazer face ao serviço da dívida, pelo que quanto mais cedo o plano de reestruturação da dívida for apresentado, devidamente acompanhado de um plano de negócios, maior será a probabilidade de sucesso do acordo que venha a ser celebrado. Por outro lado, a experiência dita que um acordo de reestruturação concretizado extrajudicialmente tem, por norma uma mais elevada taxa de sucesso do que se concretizado em sede de processo de insolvência, com a apresentação do respectivo plano de recuperação, ou mesmo em sede de RERE ou de PER.
Sucede que, o acordo com os credores bancários, por si só, pode não ser suficiente para a almejada recuperação financeira da empresa; torna-se também necessário, muitas vezes, assegurar a manutenção dos fornecimentos da empresa bem, como os pagamentos das obrigações fiscais e perante a Segurança Social. No primeiro caso, seria importante que se revelasse a solidariedade e a fidelidade entre as empresas, com manutenção dos fornecimentos, admissão de moratórias e de pagamentos faseados.
No que toca ao Estado, para além de poderem e deverem ser reequacionadas os modelos de pagamento em prestações das dívidas à Autoridade Tributária e à Segurança Social (alargamento do número de prestações, flexibilidade na definição do valor das mesmas, v.g. com crescimento gradual, e redução ou perdão de juros), deverá haver abertura de espírito para o Estado ponderar em que casos se justificará prestar, através de sociedades de garantia mútua, garantias a novos financiamentos concedidos pelas instituições de crédito para alívio da tesouraria das empresas.
Em suma, a recuperação financeira das empresas pós COVID-19 só será possível caso haja um efectivo empenhamento e união de esforços de todos os credores, sejam eles fornecedores, credores bancários ou Estado, que viabilizem o prosseguimento da respectiva actividade. Para alcançar esse desiderato, as empresas devem organizar adequadamente o modelo de recuperação de que careçam, obtendo a assessoria financeira e jurídica necessárias ao processo de negociação e de formalização dos acordos a celebrar.
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