A Impossibilidade de Retoma dos Campeonatos Profissionais de Futebol – I e II Liga – Na Época Desportiva 2019/2020

No dia 12 de março a FPF criou um grupo de emergência para monitorizar o impacto do vírus covid-19, tendo decidido suspender por tempo indeterminado as competições nacionais de futebol através de comunicado oficial (CO-0422).
Recentemente, deu por concluídas as competições não profissionais de futebol e futsal, mais concretamente o Campeonato de Portugal, por entender não existirem condições de saúde pública que assegure que os clubes possam treinar e competir em segurança. Este cancelamento ocorre depois de os campeonatos de futebol e futsal dos escalões de formação terem tido o mesmo desfecho, numa decisão tomada em 27 de Março último. Com o fim do Campeonato de Portugal ficam assim por apurar os dois clubes que, ascendem à 2ª Liga (Liga Pro). Do teor da decisão da FPF parece resultar que não será atribuído o título de campeão nem aplicadas as regras de descidas e subidas de divisão.
Por seu turno, relativamente às competições profissionais, I Liga e II Liga, as mesmas continuam suspensas, após 24 das 34 jornadas, bem como a Taça de Portugal.
Com efeito, a FPF tem vindo a prolatar as decisões de cancelamento das competições de forma gradual e de acordo com os desenvolvimentos (renovações) do estado de emergência e da covid-19, por entender que a continuidade das competições na presente época está comprometida.
No que diz respeito à LPFP, continuam suspensas as competições profissionais – Liga NOS e da Liga Pro – sem certezas de que as mesmas serão disputadas até ao final ou mesmo terminadas, com ou sem apuramento do campeão nacional, e sem descidas de divisão.
Portanto, se as épocas desportivas dos campeonatos da I e II Ligas não puderem ser retomados, qual o enquadramento jurídico que deve servir de base a uma possível solução?
Antes de mais, cumpre distinguir dois pontos essenciais no plano do enquadramento do regime legal aplicável à LPFP e às respetivas competições profissionais: i) plano da legitimidade da decisão (poder de direção e supervisão) e, ii) plano dos princípios legais aplicáveis às competições de Futebol e aos organismos que as regulam.
Em primeiro lugar, a Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto (doravante “LBAFD”), aprovada através da Lei n.º 5/2007, de 16 de janeiro veio definir as bases das políticas de desenvolvimento da atividade física e do desporto (art.º 1.º), consagrando expressamente um novo conceito de liga profissional, esclarecendo-se que esta terá obrigatoriamente que assumir a forma de associação sem fins lucrativos, e, no mesmo sentido, que as ligas estão integradas nas respetivas federações e que exercem, por delegação destas, as competências para regular as competições de natureza profissional, bem como que as relações entre as ligas profissionais e as federações respetivas são estabelecidas contratualmente, designadamente no que concerne ao número de clubes que participam na competição profissional, ao regime de acesso entre as competições profissionais e não profissionais, etc.
Verifica-se assim que a prossecução do direito à cultura física e ao desporto, constitucionalmente consagrado (n.º 1 do artigo 79º da CRP), da incumbência do Estado, em colaboração com as escolas e as associações e coletividades desportivas, aqui se incluindo promover, estimular, orientar e apoiar a prática e a difusão da cultura física e do desporto, bem como prevenir a violência no desporto (n.º 2 do artigo 79º da CRP) é transferida para as Federações e, no caso de competições profissionais, para as respetivas Ligas, a quem são delegados os poderes de direção, regulação e supervisão. Assim, da atual LBAFD resulta expresso que a LPFP é uma associação de direito privado sem fins lucrativos, que exerce, por delegação da respetiva federação, competências relativas às competições de natureza profissional, nos termos do disposto no artigo 22º da LBAFD e do disposto no artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 248-B/2008, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 93/2014, de 23 de junho – Regime Jurídico das Federações Desportivas (RJFD). Por seu turno, a FPF é uma associação de direito privado sem fins lucrativos, à qual, através da atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva, são conferidos poderes de natureza pública (cfr. artigos 14.º e 19.º da LBAFD e artigos 10.º e 14.º do RJFD).
Com efeito, qualquer decisão que venha a ser proferida relativamente à solução a adotar pela LPFP caso não seja possível completar a época desportiva 2019/2020, relativamente aos campeonatos profissionais de futebol (I e II Liga), serão aplicáveis os princípios e normas de direito administrativo em vigor, porquanto essa decisão será tomada no exercício de poderes públicos conferidos por lei à FPF e delegados na LPFP, de acordo com o artigo 27.º do RJFD.
Tanto a FPF como a LPFP encontram-se sujeitas às normas de direito público, designadamente, ao disposto no Código do Procedimento Administrativo (CPA), por imposição do n.º 1 do artigo 2.º que estatui que as disposições do presente Código respeitantes aos princípios gerais, ao procedimento e à atividade administrativa são aplicáveis à conduta de quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, adotada no exercício de poderes públicos ou regulada de modo específico por disposições de direito administrativo.
Aqui chegados, a LBAFD e os respetivos Estatutos da LPFP distinguem os papéis da Liga e da FPF, cabendo à Liga assegurar a gestão e regulamentação das atividades do futebol profissional de acordo com a lei aplicável (art.º 6.º dos Estatutos), tendo por fins, além do mais, a organização e regulamentação das competições de natureza profissional (al. a) do art.º 7.º dos Estatutos), bem como o exercício, relativamente às competições profissionais de futebol, das competências em matéria de organização, direção e disciplina, nos termos da legislação aplicável (al. b) do art.º 7.º dos Estatutos).
Para a prossecução de tais fins são atribuições da LPFP a determinação dos critérios de subidas e descidas entre as I e II Ligas assim como, em articulação com a Federação Portuguesa de Futebol, a fixação do número de descidas e subidas dos clubes ou das Sociedades Desportivas entre a II Liga e o Campeonato Nacional de, a elaboração e aprovação, também em articulação com a Federação Portuguesa de Futebol, do calendário de jogos das competições em que participam as Sociedades Desportivas associadas ordinárias da Liga. O n.º 1 do artigo 28º do RJFD impõe assim que o relacionamento entre a federação e a respetiva liga profissional seja regulado por contrato, válido por quatros épocas desportivas, estando próximo o termo do atual Contrato, o qual termina no próximo dia 30 de junho de 2020.
O referido contrato tem por objeto regular, além do mais, o calendário desportivo (al. e) da cláusula 2.ª), competindo à LPFP organizar, regulamentar e gerir as competições profissionais – I e II Ligas – todavia, vinculada às normas que resultam do contrato celebrado, às normas legais e às normas estatutárias e regulamentares da FPF, UEFA e FIFA no que concerne à organização, regulamentação e gestão das referidas competições europeias – Taça UEFA e Liga dos Campeões.
Feita a distinção na origem da atribuição dos poderes de autoridade pública, conferidos por lei (federação) e delegação (liga), assim como, a distinção do papel na direção do futebol amador e profissional, cumpre, então, entrar na questão da impossibilidade do cumprimento das competições profissionais até ao final da época desportiva 2019/2020.
O Regulamento das Competições da LPFP previu o caso de força maior mas apenas estatuiu solução para os casos em que o caso de força maior leva a uma mera impossibilidade temporária – prevendo, então, a suspensão das mesmas –, mas não para os casos em que tal caso de força maior perdure por um período de tempo ou seja de tal modo gravoso que impeça a conclusão da época desportiva em curso.
Aqui chegados entramos no segundo ponto da exposição, face à impossibilidade de continuação das competições profissionais para além do prazo fixado para o fim da época desportiva (30 de junho). Quais os princípios legais orientadores da solução?
A LPFP, na decorrência da delegação de competências regulamentou o regime de subidas e descidas de divisão, assim como a calendarização dos campeonatos profissionais de futebol nos moldes que considerou adequados e de acordo com as normas legais e com as obrigações contratualmente por si assumidas com a FPF.
Neste sentido, para regular o presente caso de força maior devem ser aplicáveis os princípios e normas de direito administrativo em vigor, porquanto a mesma será tomada no exercício de poderes públicos conferidos por lei à FPF e delegados na LPFP, a qualquer decisão que venha a ser proferida relativamente à solução a adotar caso não venha a ser possível terminar a época desportiva 2019/2020, relativamente aos campeonatos profissionais de futebol (I e II Liga).
O Regulamento das Competições e os Estatutos são omissos quanto aos procedimentos a adotar se, em caso de força maior, não for possível terminar as épocas desportivas nos prazos regulados. Existindo um caso omisso nos Regulamentos aplicáveis, as lacunas deverão ser integradas de acordo com as regras de interpretação e integração das leis, sendo certo que para a integração de lacunas de um Regulamento haveria que ver, em primeiro lugar, se o contrato ao abrigo do qual as competências são delegadas na LPFP ou se a lei habilitante dá uma resposta para a solução para o caso omisso. Tal não parece ser o caso, sendo ambos omissos sobre o que fazer se um campeonato não puder ser terminado na respetiva época desportiva por caso de força maior.
No n.º 2 do artigo 4.º do Regulamento das Competições da LPFP optou-se por uma solução semelhante à que a lei dá para os casos de impossibilidade de cumprimento temporário por caso de força maior no âmbito dos contratos administrativos: a suspensão durante o respetivo período e a possibilidade de prorrogação da época por esse facto.
Os poderes delegados na LPFP de regulamentação dos campeonatos profissionais de futebol são poderes públicos delegados obrigatoriamente na LPFP por contrato administrativo ao qual, por força do disposto no artigo 202.º, n.º 2 do CPA, são aplicáveis as regras do Código dos Contratos Públicos.
Considerando a omissão de estatuição expressa de solução nos Regulamentos, assim como no Contrato FPF/LPFP e na lei habilitante, e considerando o regime de integração de lacunas anteriormente exposto, a solução a adotar deverá sempre partir do que o CCP impuser como solução para situações semelhantes.
Claro está que o legislador poderá introduzir alterações ao ordenamento jurídico-desportivo que venham colmatar a omissão de uma solução legal para esta situação de força maior (impossibilidade), o que não é expectável, pois deixará para as instituições competentes a resolução desse problema.
Assim, regra geral, o caso de força maior surge como causa para a suspensão de uma obrigação, que regressa assim que terminar esse evento impeditivo e sem que a suspensão importe qualquer prejuízo. No entanto, quando o evento impeditivo se prolongue e torne o incumprimento do contrato impossível, consubstancia uma causa legítima de resolução do contrato, nomeadamente, por desaparecimento do seu objeto.
Nesta conformidade, os clubes participantes na competição ficariam “desobrigados” de cumprir com o disposto no n.º 1 do artigo 16º do RC da LPFP, no qual se prevê que “as competições oficiais por pontos terão obrigatoriamente duas voltas simétricas e os participantes encontrar-se-ão todos entre si, uma vez na condição de visitados e outra na de visitantes, nos respetivos estádios, não sendo autorizada a inversão dos jogos”, devendo manter-se os atos constitutivos de direitos já proferidos, ao abrigo do princípio da legalidade, tendo por consequência a consideração dos resultados desportivos homologados à presente data, daí extraindo as respetivas consequências ao nível das subidas e descidas de divisão.
À presente data, todos os resultados das I e II Ligas de Futebol que não tenham sido objeto de impugnação encontram-se homologados por já terem decorrido mais de 30 dias desde a realização das respetivas partidas.
Em face do exposto, a consideração dos resultados desportivos homologados à presente data, daí extraindo as respetivas consequências ao nível das subidas e descidas de divisão, é a solução que se impõe ao abrigo do princípio da legalidade e por aplicação analógica do regime estatuído no Código dos Contratos Públicos à presente situação, por ser tal regime o mais próximo ao caso ora analisado, considerando que os poderes regulamentares atribuídos à LPFP resultam de delegação de poderes, por contrato celebrado com a FPF, constituindo tal contrato um contrato administrativo.
Não obstante, não sendo possível enveredar pela conclusão das competições na totalidade (Liga Nos e Liga Pro), deverão os clubes associados e os titulares dos órgãos da LPFP procurar ativamente negociar com a FPF a previsão expressa no contrato renovado do alargamento da I Liga a 20 clubes para a época desportiva de 2020/2021, de acordo com os princípios da boa-fé e da solidariedade de associados.
O princípio da solidariedade entre os associados da I e II Liga plasmado na alínea i.) do artigo 10.º dos Estatutos da LPFP veio consagrar a responsabilização coletiva da LPFP, dos seus órgãos e dos seus associados na realização dos fins da LPFP e, em consequência, de procurarem ativamente encontrar soluções que evitem prejuízos injustificados para qualquer dos associados.
Em decorrência daqueles princípios, é dever da LPFP, dos seus órgãos e dos seus associados, procurarem, no âmbito do processo de renovação do contrato celebrado com a FPF para as próximas épocas e à semelhança de alterações ocorridas no passado em virtude da prolação de decisões judiciais, regular um alargamento do campeonato da I Liga de Futebol Profissional para a época 2020/2021 para 20 equipas, evitando-se assim que existam equipas despromovidas quando tal consequência é evitável e indesejável.
Conclui-se, portanto, que o Regulamento das Competições da LPFP previu o caso de força maior mas não estatuiu solução para os casos em que o caso de força maior perdure por um período de tempo ou seja de tal modo gravoso que impeça a conclusão da época desportiva em curso. Aqui chegados cumpre à LPFP, no exercício dos poderes públicos conferidos por delegação (FPF), numa primeira linha, recorrer à aplicação do princípio da legalidade e com isso considerar os resultados desportivos homologados à presente data, daí extraindo as respetivas consequências por exemplo ao nível das subidas e descidas de divisão, a fim de garantir o respeito pela verdade desportiva. Numa segunda linha, menos formalista poderá enveredar-se por uma solução que resulte necessariamente da negociação entre os clubes participantes da LPFP, assim como, do novo contrato que regula a relação entre federação e a liga para os próximos 4 anos, por via da alteração dos regulamentos da competição, mitigando os impactos negativos desportivos e económicos, direcionando as energias e competências na preparação e organização da próxima época desportiva no pós covid-19.
Impossibilidade de Retoma dos Campeonatos Profissionais de Futebol – I e II Liga – Na Época Desportiva 2019/2020
Por António Raposo Subtil, João Subtil e Rui Resende
Artigo de opinião elaborado no mesmo sentido, vd. Rui Resende, A. Raposo Subtil, João Subtil (Abril de 2020). A impossibilidade de retoma dos campeonatos profissionais de futebol – I e II Liga – na época desportiva 2019/2020. Estudo Jurídico. Rede de Serviços de Advocacia de Língua Portuguesa (RSA LP), Lisboa. 31 pp.
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