Como a covid-19 “afectou” os contratos de arrendamento em Moçambique – breves considerações, por Áurea Guinda
Numa época em que Moçambique e o mundo enfrentam um “inimigo invisível” que retardou em grande escala a economia mundial foi recentemente decretado o estado de emergência nacional pelo Decreto Presidencial n.º 11/2020, de 30 de Março, cuja ractificação foi feita pela Assembleia da República através da Lei n.º 1/2020, de 31 de Março, com vista a reduzir o impacto negativo dessa pandemia em Moçambique.
Com vista a concretizar e a operacionalizar as medidas urgentes de excepção necessárias, adequadas e proporcionais à situação para prevenir a propagação da pandemia da covid-19, salvaguardando a vida humana, a saúde pública e assegurando o funcionamento dos serviços, foi aprovado o Decreto n.º 12/2020 de 2 de Abril.
Contudo, não obstante, as demais e importantes medidas tomadas nesse mesmo Decreto, pretendemos com este artigo analisar a aplicação prática do artigo 29º do Decreto n.º 12/2020 de 2 de Abril. Tal artigo estabelece que:
- É proibido, durante o Estado de Emergência, o despejo de inquilino nos contratos de arrendamento para fins habitacionais.
- O disposto no número anterior não desonera o inquilino do dever de pagamento da renda devida.
Definido em termos específicos pelo artigo 3º do Decreto n.º 43 525 de 25 de Março de 1961 (“Lei do Inquilinato”) e pelo Código Civil Moçambicano (no seu artigo 1022º), em termos gerais, o contrato de arrendamento/ locação tem como uma das suas principais características a obrigatoriedade do inquilino pagar a renda resultante do gozo temporário do imóvel.
Ora bem, estando o país em estado de emergência pretendeu-se salvaguardar a posição do inquilino cujo arrendamento seja para fins habitacionais. No entanto e mesmo que o senhorio não possa despejar o inquilino, sobre este último continuará a pender o dever de cumprir com a sua obrigação de pagamento das rendas.
Deste modo, ressalta à vista uma dúvida: e para os casos em que o inquilino que já tinha efectivamente sido avisado da ocorrência do despejo e o mesmo ia ter lugar no mês da aprovação do presente decreto. Qual das leis supra será de aplicar?
Estabelece o artigo 1º da Lei do Inquilinato que subsidiariamente a ela, são aplicáveis as disposições do Código Civil quer gerais quer próprias do contrato de locação que não a contrariarem.
Ora o Decreto n.º 12/2020 de 2 de Abril, contraria de forma clara o direito que o senhorio tem de despejar o inquilino, mesmo que todas as formalidades legais já tenham sido cumpridas, faltando apenas a efectivação do despejo.
Contudo, como já anteriormente foi dito de forma bastante clara, o Estado de Emergência limita algumas liberdades, incluindo a liberdade do senhorio despejar o inquilino, sendo que desta forma o Decreto se sobrepõe à Lei do Inquilinato, devendo aquele ser obedecido, não obstante o direito de despejo que o senhorio tinha sobre o inquilino.
Relativamente ao dever de pagamento de renda sobre um imóvel que o inquilino estava preparado para abandonar. Outra duvida se coloca: deve este, caso o estado de emergência se prolongue, efectuar o pagamento da renda?
Neste caso, não se suscitam grandes dúvidas. O decreto é claro ao estabelecer que: “O disposto no número anterior não desonera o inquilino do dever de pagamento da renda devida”.
Ou seja se o inquilino por algum motivo tiver a pretensão de permanecer no imóvel em causa, deverá proceder de modo normal com o cumprimento de todas as suas obrigações, incluindo o pagamento das rendas devidas.
No entanto, mesmo com a proibição do despejo pelo senhorio, se a obrigação de pagamento da renda pelo inquilino já tiver sido cumprida, nada o impede de abandonar o imóvel em causa mesmo que o estado de emergência se prolongue e nos termos do contrato de arrendamento assinado, o “abandono” do imóvel não implicar nenhum outro pagamento.
Por exemplo, se estava decidido que a 20 de Abril de 2020 o inquilino seria formalmente despejado e tendo este cumprido com as obrigações que deram lugar ao despejo, inclusive, efectuado o pagamento da renda, pode este inquilino abandonar o imóvel antes da data acordada.
Contudo, se as obrigações não tiverem sido cumpridas, não poderá o senhorio despejar o inquilino, devendo, no entanto, o inquilino cumprir com as obrigações de pagamento da renda do imóvel, se nele pretender permanecer.
No entanto, se o inquilino não cumprir com a obrigação de pagamento da renda (sempre tendo em atenção ao convencionado no contrato de arrendamento, relativamente aos prazos dos pagamentos das rendas) e mesmo assim, abandonar o imóvel, a obrigação do inquilino não se extingue com o seu abandono, podendo o senhorio lançar mãos aos meios jurídicos legais existentes, para a cobrança da renda correspondente.
Por fim, uma última questão: Atendendo e considerando a realidade moçambicana, que contratos de arrendamento são tidos como validos para aplicação destas medidas excepcionais?
Para os devidos efeitos, são validos para aplicação destas medidas, todos os contratos que tenham sido reduzidos a escrito, com a assinatura do senhorio e do inquilino.
No entanto a falta de um contrato na forma escrita não impede que a sua existência seja reconhecida em juízo, por qualquer outro meio de prova, o que significa dizer que a medida é aplicável a estes contratos, desde que o inquilino ou o senhorio o possam provar a sua existência. Para o caso do inquilino em especial a forma de prova aceite, será a apresentação de um recibo de pagamento de renda.
Caso tal não exista, em juízo tal contrato pode ser posto em causa e considerado absolutamente nulo e não será invocável perante qualquer autoridade pública, ainda que a falta seja exclusivamente imputável a uma das partes e consequentemente a medida decretada poderá não ser aplicável ao suposto contrato de arrendamento.
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