Salvar Empresas por via da Recuperação Preventiva, por Sandra Alves Amorim
Perante a atual situação de crise o Governo adotou um conjunto de medidas excecionais e temporárias de resposta ao impacto negativo da covid-19 na situação económica das empresas e das pessoas singulares, nomeadamente através do alargamento dos prazos para cumprimento das obrigações fiscais, do lay-off simplificado, da abertura de linhas de financiamento e apoio à tesouraria das empresas e, no que respeita às pessoas singulares, entre outras, da moratória no pagamento dos créditos à habitação.
Se por um lado, as medidas de apoio disponibilizadas pelo executivo permitem a “sobrevivência” de algumas empresas, impedindo, no imediato, a situação de insolvência por impossibilidade do cumprimento de obrigações vencidas, por outro lado, muitas dessas empresas ver-se-ão daqui a poucos meses (pós covid-19) impedidas, por falta de liquidez, de cumprir as suas obrigações, antevendo-se o aumento substancial dos processos de insolvência.
Acresce que, muitas das medidas aprovadas não estão ao alcance da generalidade das empresas portuguesas, nuns casos por impossibilidade do cumprimento dos requisitos de acesso aos apoios e, noutros, face aos prazos fixados para a respetiva decisão de atribuição.
Será também inevitável, no contexto atual, o aumento das insolvências de pessoas singulares, quer por força do número de despedimentos quer pela redução dos rendimentos familiares.
A Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril de 2020 que veio proceder à alteração Da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março e do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, determinou a suspensão do prazo de apresentação do devedor à insolvência, nos termos do artigo 18.º, n.º 1 do CIRE.
A situação de insolvência encontra-se definida no n.º 1 do artigo 3.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE), que dispõe que se encontra em situação de insolvência o devedor que não se encontre capaz de cumprir as suas obrigações vencidas.
Assim, nos termos do já referido artigo 18º do CIRE, compete às empresas e demais pessoas coletivas requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da sua insolvência, ou à data em que este devesse conhecê-la, sob pena de qualificação da insolvência como culposa, nos termos do artigo 186.º do CIRE. A apresentação a insolvência cabe ao órgão social de quem depende a administração do devedor (artigo 19.º do CIRE).
No caso das pessoas singulares, dispõe o artigo 18.º, n.º 2 do CIRE, que sobre estas não recai o dever de apresentação à insolvência, caso não sejam titulares de uma empresa aquando da ocorrência da situação de insolvência.
No entanto, pode ser liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo restante (perdão das dívidas após terem decorrido 5 anos sobre o encerramento do processo), caso o devedor não se apresente à insolvência nos 6 meses seguintes à verificação da situação de insolvência, disso resultando prejuízo para os credores, sendo que o devedor sabia ou não podia ignorar sem culpa grave, que não existia qualquer perspetiva de séria melhoria da sua situação económica.
Assim, a suspensão do prazo de apresentação à insolvência revela, essencialmente, para efeitos de eventual qualificação de insolvência como culposa, à luz do artigo 186º, n.º 3 al. a) do CIRE), retirando assim aos administradores/gerentes das empresas a eventual responsabilidade que para os mesmo poderia advir do não cumprimento do dever de apresentação à insolvência no prazo legalmente previsto para o efeito no referido artigo 18.º do CIRE, não refletindo, contudo, uma consequência relevante para a situação económica da empresa ou para a sua reestruturação. Na realidade, a suspensão do prazo de obrigação de apresentação à insolvência em nada impede que terceiros credores da empresa venham requerer a declaração de insolvência da mesma (artigo 20.º do CIRE).
Por outro lado, a mencionada suspensão do prazo de apresentação à insolvência não suspende as obrigações dos administradores/dirigentes das empresas que devem continuar a cumpri-las de forma escrupulosa e com redobrado cuidado no contexto atual, sob pena de lhes poder vir a ser assacadas responsabilidades futuras.
Por este facto, perante a atual situação de crise e havendo a necessidade de manutenção do tecido empresarial, é importante que as empresas se socorram dos mecanismos legalmente disponíveis, por forma a fazer face às futuras consequências económicas causadas pelo atual panorama nacional.
Sendo que, como resulta claro, as medidas excecionais de apoio aprovadas não estão ao alcance de todas as empresas, sendo em muitos casos insuficientes
Assim, o recurso a procedimentos de reestruturação surge como a solução mais adequada para algumas empresas.
Com efeito, estes procedimentos permitem a suspensão das obrigações de pagamento e das acções de cobrança coerciva, bem como de eventuais pedidos de insolvência requeridos por terceiros credores, proporcionando o tempo necessário para que as empresas se possam adequar e reestruturar face a uma nova realidade.
Permite, ainda, a salvaguarda dos direitos dos trabalhadores, mantendo a possibilidade destes recorrerem aos apoios da segurança social, nomeadamente, do fundo de garantia social e do subsidio de desemprego.
Assim, estando numa situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas suscetível de recuperação, as empresas poderão recorrer aos mecanismos de recuperação já previsto no nosso ordenamento jurídico, designadamente:
Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas (RERE), que, como o nome indica, se trata de um mecanismo extrajudicial, que se destina a promover negociações com os credores com vista à aprovação de um acordo de reestruturação, conferindo às empresas a possibilidade de continuarem a exercer a sua atividade económica, evitando, assim, a insolvência. Este procedimento é voluntário, podendo, por isso, o devedor incluir nas negociações todos ou apenas alguns dos seus credores, sendo que têm de participar nas mesmas os credores que representem, pelo menos, 15% dos créditos não subordinados. Pelo que, o acordo afeta apenas os direitos de crédito dos credores que subscreverem o protocolo de negociação.
Processo Especial de Revitalização (PER), com o objetivo de estabelecer negociações com os seus credores de forma a definir e acordar condições para a viabilização da sua revitalização, sendo garantida às empresas a proteção da sua capacidade produtiva e manutenção dos postos de trabalho, evitando, assim, uma situação de insolvência.
Este mecanismo garante, ainda, a proteção dos credores que financiam as empresas devedoras durante este período, permitindo ainda uma negociação universal com todos os credores, alinhando as suas posições.
As negociações a envidar têm como objetivo a aprovação e homologação de um Plano de Revitalização que permita e reestruturação do passivo das empresas, que pode conter, designadamente, um alargamento dos prazos de pagamento, uma redução de juros, um perdão de parte do capital em dívida, bem como a apresentação de um novo modelo de negócio, sendo o mesmo vinculativo para todos os credores se aprovado pelas maiorias legalmente previstas e homologado por sentença judicial.
No caso das pessoas singulares, que não sejam titulares de uma empresa, e que se encontram numa situação económica difícil ou numa situação de insolvência meramente iminente, tem ao seu dispor o Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP), instrumento com o objetivo de negociar com os respetivos credores, por forma a assinar um acordo de pagamento, prevendo a reestruturação do passivo dos devedores, evitando-se, assim, a sua insolvência, e do Plano de pagamentos em sede de Processo de Insolvência com o objetivo a reestruturação do passivo do devedor, acautelando os interesses dos credores, por forma a ser homologado, podendo prever, designadamente, alargamento nos prazos de pagamento, perdões de dívidas, constituições de garantias, extinções de garantias reais ou privilégios creditórios existentes, um plano de pagamentos faseados ou o pagamento numa só prestação.
Ao contrário do Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP), o Plano de Pagamentos é um incidente no Processo de Insolvência, pressupondo, por isso, que o devedor se encontra numa situação de insolvência, não se encontrando capaz de cumprir as suas obrigações vincendas.
Este procedimento aplica-se, apenas, a pessoas singulares que não sejam titulares de empresas ou pessoas singulares que, à data do início do processo de insolvência, não tenham dívidas a trabalhadores, cujo número de credores não seja superior a 20 e que tenham um passivo igual ou inferior a € 300.000,00. O plano deve ser apresentado com a petição inicial de insolvência, ou no prazo de oposição quando o pedido de insolvência seja apresentado por terceiro.
Com a aprovação e homologação do plano, encerra-se o processo de insolvência, cessando, por isso, os seus efeitos, não havendo, nomeadamente a apreensão e liquidação dos bens do insolvente.
Assim, a presente conjuntura impõe, desde logo, o esclarecimento sobre os mecanismos legalmente disponíveis adequados à reestruturação do passivo das empresas e das pessoas singulares e que permitem ultrapassar a situação económica difícil que estão a enfrentar.
Face ao exposto, os mecanismos de restruturação, como o Processo Especial de Revitalização (“PER”), o Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas (“RERE”) o Processo Especial para Acordo de Pagamento (“PEAP”) e o Plano de Pagamentos no âmbito do processo de insolvência, ganham uma relevância acrescida, sendo o respetivo conhecimento uma mais-valia a considerar pelas empresas, pelos empresários e pelas pessoas singulares.
É, no entanto, imperativo, face à atual situação de crise provocada pela covid-19 e às consequências económicas que a mesma trará, que o legislador crie novas soluções no quadro da reestruturação, reforçando os institutos jurídicos já existentes, no sentido do seu melhor enquadramento nesta nova realidade, designadamente através da flexibilização do recurso das empresas aos processos PER e RERE, bem como na agilização da aprovação de planos de recuperação, de forma a permitir a efetiva recuperação das empresas e das pessoas singulares e, evitar a todo o custo a insolvência.
Neste contexto urge transpor para ordenamento jurídico interno a Diretiva (EU) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Junho, publicado em 26 de junho que estabelece as regras relativas aos regimes de reestruturação preventiva, processos conducentes ao perdão de dívidas contraídas por empresários insolventes e medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação insolvência e ao perdão de dívidas de empresas e empresários.
Esta Diretiva comunitária que já se encontra em vigor e que deve ser transposta pelos Estados Membros até 17 de julho de 2021, aplica-se aos regimes de reestruturação preventiva à disposição dos devedores com dificuldades financeiras, caso exista uma probabilidade de insolvência, destinados a evitar a insolvência e a garantir a viabilidade do devedor; aos processos conducentes a um perdão das dívidas contraídas por empresários insolventes; e às medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas.
Pelo que, a transposição para a ordem jurídica interna desta Directiva revela-se de extrema importância de forma a prevenir e/ou atenuar o impacto de futuras insolvências na economia nacional.
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