As Medidas de Proteção dos Arrendatários versus as Limitações ao exercício dos direitos dos senhorios e os litígios que se advinham, por Sofia Gomes Cardoso e Carla dos Santos Freire
Desde a data em que foi declarada a situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS – Cov-2 e da doença Covid-19, têm vindo a ser sucessivamente aprovadas determinadas medidas excepcionais e temporárias na área do arrendamento urbano com vista a serem alcançados os seguintes objectivos:
(i) Protecção da Habitação Própria dos Arrendatários;
(ii) Manutenção da actividade dos estabelecimentos comerciais (cfr. art. 8º A da Lei nº nº 1-A/2020 de 19/03 com as alterações introduzidas pela Lei nº 14/2020, de 09/05);
(iii) Suspensão dos efeitos da cessação dos contratos de arrendamentos habitacionais e não habitacionais até 30 de Setembro de 2020, na sequência da sua denúncia, revogação, caducidade ou oposição à renovação (cfr. art. 8º da Lei nº 1-A/2020 de 19/03, com as alterações introduzidas pela Lei nº 14/2020, de 09/05 ;
(iv) Impedir a resolução dos contratos de arrendamentos para fins habitacionais e não habitacionais por falta de pagamento de rendas vencidas nos meses em que vigore o estado de emergência e no primeiro mês subsequente, através da criação de uma moratória para os arrendatários que venham a comprovar uma diminuição significativa dos seus rendimentos e para aqueles que tenham ou seus estabelecimentos comerciais encerrados ou a actividade suspensa (cfr. artigos 4º, 8º e 9º da Lei nº 4º-C/2020, de 06/04, com as alterações introduzidas pela Lei nº 17/2020, de 29/05).
Mais recentemente, a Lei nº 16/2020 de 29 de Maio, veio aditar à Lei nº 1-A/2020, de 19/03, o artigo 6º A (Regime Processual Transitório e Excepcional) passando a alínea c) do nº 6 a ter a seguinte redacção: Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório “As acções de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa”.
Ora, tendo em consideração a redacção dada pelo legislador ao referido preceito legal, certamente, vão surgir nos próximos tempos diversas interpretações quanto à compatibilização desta alínea com a alínea b) do nº 6 e com o nº 7 do referido artigo 6º A, nomeadamente, se as acções executivas para entrega de imóvel arrendado estão abrangidas pela alínea c) ou não, bem como, qual o alcance que o legislador pretendeu dar à expressão “decisão judicial final a proferir” e, ainda, qual o meio processual à disposição do arrendatário para invocar tais circunstâncias excepcionais, mais concretamente, se é pela via de um incidente, se é por via de simples requerimento.
Sem prejuízo da livre interpretação e aplicação que venha a ser dada pelos nossos Tribunais em relação às referidas questões, consideramos que a intenção do legislador foi a de integrar na alínea c) do nº 6 todas as situações em que esteja subjacente uma relação locatícia, abrangendo, por conseguinte, quer as acções de despejo, quer os procedimentos especiais de despejo, quer as execuções para entrega de imóveis arrendados, tanto mais que, a referida alínea faz expressa referência a “procedimentos especiais de despejo e a processos para entrega de coisa imóvel arrendada”.
Por outro lado, consideramos que não estamos perante uma suspensão automática, ou seja, tais procedimentos judiciais apenas poderão ficar suspensos caso se comprove que a efectivação do despejo pode vir a colocar o arrendatário em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa e, ainda que, a invocação de tais circunstâncias terá de ser requerida e comprovada por parte do arrendatário.
Sendo assim, face ao teor de tais medidas excepcionais e transitórias, não podemos deixar de equacionar o seguinte: As medidas aprovadas consubstanciam um impedimento total ao exercício dos direitos dos senhorios? As medidas aprovadas correspondem a um real e efectivo benefício para os arrendatários? Tais medidas vão provocar a final um aumento da litigiosidade?
No que concerne aos senhorios, consideramos que, à partida, não se verifica uma limitação profunda no exercício dos seus direitos, fundamentalmente, pelas seguintes razões:
(i) Não existe qualquer impedimento a que na pendência deste período excepcional e transitório, procedam à denúncia dos contratos de arrendamento (com fundamento por ex. nas circunstâncias previstas no artigo 1101º do Código Civil), à invocação da oposição à renovação (caso não o façam os contratos renovar-se-ão automaticamente), ou, à invocação da caducidade do arrendamento, contudo, o que sucede é que, os efeitos dessas declarações ficarão suspensos até 30 de Setembro de 2020;
(ii) Com excepção das situações previstas nos artigos 4º e 9º da Lei nº 4-C/2020, de 06/04 com as alterações introduzidas pela Lei nº 17/2020 de 29/05 (regime excepcional para as situações de mora) e as situações previstas no art. 8º A da Lei nº 1-A/2020 de 19/03, com as alterações introduzidas pela Lei nº 14/2020 de 09/05, não existe qualquer impedimento à propositura de acções de despejo cujo fundamento se tenha verificado em data anterior, ou seja, contemporâneo à decretação da situação epidemiológica Covid-19 (exemplo situações previstas nos nºs 2, 3 e 4º do art. 1083º do CC).
(iii) Em relação às acções executivas para entrega de imóvel arrendado e aos procedimentos especiais de despejo, para além daqueles que já se encontravam pendentes à data em que foram decretadas tais medidas excepcionais, podem ainda ser instaurados na pendência da actual situação, quer aqueles procedimentos que respeitem à alínea e) do nº 2 do art. 15º do NRAU (ex. resolução do contrato de arrendamento por rendas vencidas em data anterior a 1 de Abril e por rendas vencidas e não liquidadas relativamente aos arrendatários que não beneficiem do regime da moratória), ou, à alínea f) do nº 2 do art. 15º do NRAU, quer as acções executivas para entrega de imóvel com fundamento em decisões judiciais que entretanto venham a ser proferidas.
(iv) Apenas se verificará a suspensão das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e das acções executivas, caso se venha a comprovar que possa advir para o arrendatário uma situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
Por outro lado, relativamente aos arrendatários, não obstante, ser inegável que a intenção do legislador foi claramente no sentido de proteger o direito à habitação própria e à manutenção da actividade comercial e empresarial e, ainda, evitar uma escalada de procedimentos judiciais com vista à entrega efectiva os imóveis durante este período tão conturbado, também, não deixa de ser menos verdade que as medidas adoptadas não só, não os desresponsabilizam do cumprimento das suas obrigações, quer no que respeita ao pagamento das rendas, quer no que concerne à entrega dos imóveis a partir do dia 30 de Setembro, nas situações em que beneficiaram da suspensão dos efeitos da cessação dos contratos.
Na verdade, a moratória ora concedida em relação ao pagamento das rendas, revela-se na prática na contração de uma divida quer perante o senhorio, quer perante o Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (para os arrendatários que recorram aos empréstimos concedidos por esta entidade), divida esta que, terá de ser liquidada nas condições legalmente fixadas ou estipuladas entre as partes, sob pena de, estas entidades virem a solicitar a sua cobrança judicial.
Sendo assim, perante este cenário, caso não seja possível os arrendatários e os senhorios resolverem os seus diferendos pela via extrajudicial, não nos restam dúvidas de que irá verificar-se um aumento da litigiosidade, isto porque, não só, os senhorios em relação aos contratos de arrendamento que cessem os seus efeitos a partir do dia 30 de Setembro, vão accionar os procedimentos legais com vista à entrega efectiva dos imóveis, como também, em relação ao diferimento do pagamento das rendas, certamente, alguns dos arrendatários não terão as condições financeiras necessárias para proceder ao pagamento das rendas respeitantes ao próprio mês e ao diferencial respeitante às rendas não liquidadas, pelo que, também, por esta via, verificar-se-á um incremento das acções de despejo.
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