Reestruturações Societárias no Plano de Insolvência: Repensar soluções
À laia de introdução, desde já nos dispensamos de efetuar quaisquer apresentações formais sobre o Inimigo. Já muito se escreveu sobre a pandemia causada pela doença batizada “COVID-19”, o modo como influenciou o panorama mundial e, inevitavelmente, o território nacional. Assim, vemo-nos atualmente vividos num tempo de incertezas e dificuldades socioeconómicas de proporções ainda não quantificáveis. Neste particular, a crise epidemiológica fez repercutir no tecido empresarial português os seus nefastos efeitos com elevada acuidade, maxime, em resultado da quebra nos elos de ligação entre as cadeias de distribuição e os fornecedores de bens e/ou serviços no âmbito do exercício de determinadas atividades, bem como a paragem total de certos setores – quer por imposição legal ou puramente surgindo como natural consequência da necessidade de combater e mitigar a propagação do Coronavírus – o que resultou numa redução abrupta e acentuada da faturação de uma elevada percentagem das empresas portuguesas.
Em síntese, esta pandemia veio acentuar problemas que já vinham assolando as empresas portuguesas que, em grande parte, já apresentavam um certo desequilíbrio ao nível dos capitais próprios (decorrente, essencialmente, de um elevado patamar de endividamento) e, também, uma evidente falta de liquidez, fragilidades essas que, de uma forma ou de outra, foram exacerbadas pela presente crise.
Assim, tendo em conta as dificuldades experienciadas pelas empresas no presente contexto, julgamos adequado trazer ao debate, de modo simples e esclarecido, quais os múltiplos institutos disponíveis e adequados à recuperação da “saúde” das entidades que se encontrem já impossibilitadas ou iminentemente impossibilitadas de cumprir as suas obrigações vencidas (situação de insolvência) ou se encontrem numa situação económica difícil. Neste aspeto, os instrumentos que viabilizam a recuperação económica e a reestruturação ao dispor das empresas portuguesas são, tal “Arca de Noé”, vastos e diversos.
Neste sentido, um primeiro instrumento extrajudicial, leia-se, levado a cabo fora dos tribunais, prende-se com a própria negociação que as empresas podem encetar com os credores e que poderá culminar na celebração de um contrato de reestruturação de créditos, destinado a promover alterações, a título de exemplo, sobre as condições de pagamento da dívida, como sejam o ajustamento do prazo de carência, juros e outras prestações contratualmente previstas.
Por outro lado, ainda fora dos Tribunais, as empresas podem lançar mão do Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas (RERE), instituído pela Lei n.º 8, de 02/03/2018 e que permite à empresa devedora a negociação com os seus credores – que sejam representativos de, pelo menos, 15% dos créditos não subordinados – com intuito de celebrar um acordo de reestruturação societária, tendo em vista a viabilização económica e a consequente preservação da entidade e manutenção da atividade.
Prosseguindo, já no âmbito judicial, o Processo Especial de Revitalização (PER – cfr. art.ºs 17.º-A e ss. do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas – CIRE), que se destina a permitir à empresa que ainda seja suscetível de recuperação e manutenção da atividade a possibilidade de estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes um acordo conducente à sua revitalização. Visto bem, o PER pode culminar no Plano de Revitalização do Devedor (cfr. art.º 17.º-F do CIRE), traduzindo-se num plano que segue o regime do plano de insolvência, sendo submetido aos credores para aprovação e, após o decurso de um período de negociação forçada, é homologado (“validado”) judicialmente; de outro prisma, o PER pode concretizar-se num Acordo Extrajudicial de Recuperação (cfr. art.º 17.º-I do CIRE), assinado pela empresa devedora e por credores que representem pelo menos a maioria de votos, posteriormente homologado pelo juiz.
Numa outra perspetiva, e sempre com o intento de preservar a subsistência da entidade, no âmbito do Processo de Insolvência, pode a empresa recorrer ao Plano de Recuperação sem extinção do devedor (cfr. art.º 195.º do CIRE) que, por seu turno, se traduz num acordo de recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, aprovado pelos credores após a declaração de insolvência, com a subsequente homologação judicial do Plano de Recuperação de Insolvência.
Especificamente, no âmbito do processo de insolvência acima enunciado podem ser propostas variadas soluções de reestruturação societária (cfr. art.º 198.º do CIRE, sob a epígrafe “Providências específicas de sociedades comerciais”), designadamente, (i) a constituição de uma nova empresa (o denominado “saneamento por transmissão” previsto no art.º 199.º do CIRE), através do qual o plano de insolvência poderá prever a constituição de uma ou mais sociedades destinadas à exploração de estabelecimento adquirido à massa insolvente mediante contrapartida adequado) e, (ii) o aumento de capital (cfr. art.º 198.º, n.º 2, al. b) do CIRE), nomeadamente mediante a conversão de créditos de terceiros, credores ou sócios em participações sociais, com ou sem respeito pelo direito de preferência dos sócios legal ou estatutariamente previsto, o qual permitirá dotar a sociedade de maior capacidade económica e dos meios suficientes para prosseguir a sua atividade e conferir reforço da credibilidade financeira da sociedade no mercado, maxime, em face dos seus credores e eventuais financiadores. Traduz-se num reforço dos capitais próprios da empresa, podendo concretizar-se mediante novas entradas em dinheiro ou em espécie (com relevância in casu, mediante a conversão de créditos de terceiros e/ou sócios) ou, através da incorporação de disponibilidades pré-existentes (reservas). É importante sublinhar que o mecanismo de aumento de capital mediante conversão de suprimentos (financiamento dos sócios) foi facilitado com a dispensa de um Relatório do Revisor Oficial de Contas (ROC) independente, sendo suficiente declaração do contabilista certificado ou do ROC da sociedade, sempre que a revisão de contas seja legalmente exigida, mencionando que o valor dos créditos dos sócios a converter consta dos regimes contabilísticos, bem como a proveniência e a data (cfr. art.º 89.º, n.º 4 do Código das Sociedades Comerciais). Sem prejuízo, a realização de aumentos de capital por parte dos credores significaria adquirirem a qualidade de sócios ou acionistas o que, ao mesmo tempo, os faria assumir o risco empresarial (e de capital), pelo que este poderá relevar-se um fator dissuasor na utilização deste instituto.
Adicionalmente, no domínio dos regimes insolvenciais ora enunciados e tendo sempre em vista a recuperação da entidade, podem, ainda, as empresas optar por efetuar uma reestruturação societária coloquialmente designada como “Operação Harmónio” (cfr. art.º 198.º, n.º 2, al. a), do CIRE), ou seja, uma redução do capital social para cobertura de prejuízos, incluindo para zero1 (“zerar a sociedade”) ou outro montante inferior ao mínimo estabelecido na lei para o respetivo tipo de sociedade, desde que, neste caso, a redução seja acompanhada de aumento do capital para montante igual ou superior àquele mínimo, com a concomitante exclusão dos antigos detentores de capital e a admissão de novos sócios/acionistas. Do ponto de vista contabilístico, a operação resulta na cobertura de prejuízos e na injeção de “novo” capital comportando, destarte, a vantagem de “limpar” as contas da sociedade facilitando, por isso, a obtenção de novo crédito junto dos credores.
Avançando, julgamos ser o momento tempo de repensar as práticas de boa gestão societária e de precaver e acautelar o futuro das entidades que compõem o tecido empresarial português. Assim sendo, arriscamos que um bom primeiro passo seria o de garantir que as empresas fossem criadas, desde o início da sua constituição, com a correta formação do capital social, adequada, portanto, ao exercício da atividade que se propõem exercer.
Ademais, além da conveniente formação do capital social, e com referência às clássicas formas de auto capitalização, a saber, a realização, por parte dos sócios ou acionistas, de prestações suplementares, de prestações acessórias ou de suprimentos, devem estas ferramentas ser utilizadas com bom peso e medida tendo em atenção o perigo da subcapitalização e do sobre-endividamento. Entre nós, diríamos que as prestações suplementares serviriam melhor o propósito de reforço e capitalização das empresas, visto que não se reconduzem simplesmente à figura de empréstimo, sendo a sua realização antes contabilizada como capital próprio, dado que o seu reembolso aos sócios só pode ocorrer se i) for objeto de deliberação pelos sócios; ii) a situação líquida não ficar inferior à soma do capital e da reserva legal; iii) o sócio já tiver liberado a sua participação social; e, iv) não tenha sido declarada a insolvência da sociedade. Assim, funcionam como uma alternativa ao aumento de capital, com a vantagem de possuírem um regime mais simplificado de operacionalização, porquanto, em regra, estão sujeitas apenas a uma deliberação tomada por maioria simples em assembleia-geral e não carecem de qualquer registo comercial ou necessidade de alteração do contrato de sociedade.
Por fim, perante o atual clima atribulado que as empresas são obrigadas a navegar, somos impelidos a defender uma ampliação excecional do âmbito subjetivo de aplicação dos mecanismos de recuperação e reestruturação de empresas; talvez, através da dispensa de qualquer outro requisito de acesso a estes institutos (designadamente, a declaração escrita e assinada pelo contabilista certificado ou ROC da empresa), bastando, para o efeito, verificação do recurso ao lay-off simplificado por parte da empresa; o que permitiria destacar o papel profícuo não só de reestruturação, mas, de igual modo, de prevenção insolvencial, o que contribuiria, do ponto de vista macroeconómico, para a solidez do palco empresarial português.
Terminando, entendemos que este é o tempo para reorientar modelos de gestão já experimentados e, outrossim, utilizar os instrumentos jurídicos existentes acima expendidos que viabilizem uma recuperação da saúde económico-financeira, revitalização e manutenção da atividade das empresas.
Nota: A redução de capital a zero só é admissível se for de presumir que, em liquidação integral do património da sociedade, não subsistiria qualquer remanescente a distribuir pelos sócios.
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