O agravamento das obrigações dos dirigentes das empresas em recuperação
As obrigações dos dirigentes estão agravadas pela situação de pandemia em todos os sectores de atividade e em todos os veículos de investimento. De facto, nas diversas áreas do comércio, da indústria e do imobiliário existe uma nota de transversalidade que passa pela assunção da complexificação da exigibilidade daquelas responsabilidades. Em especial nas empresas imobiliárias a opção por se apresentarem ou não à insolvência em situações de fragilidade de tesouraria, ainda que o balanço se encontre positivo, não deixa de ser uma escolha de extrema sensibilidade e dificuldade e que alberga, por isso, um espectro largo de inúmeros desafios próprios.
A suspensão dos prazos processuais, nomeadamente do prazo de apresentação à insolvência, propugnada pelo quadro legal extraordinário deste período de COVID-19, não significou que houvesse um qualquer congelamento do conjunto de responsabilidades dos dirigentes das empresas. Pelo contrário, existiu, isso sim, a necessidade daqueles dirigentes tomarem decisões urgentes num quadro de dificuldades económicas graves das próprias empresas que se encontram no limiar da solvabilidade e com o fantasma, sempre presente, da iminente insolvência. Daí que muitas dessas empresas, tendo solicitado alguns dos apoios existentes (nomeadamente o processo de lay-off simplificado) lidam, agora, com dificuldades acrescidas nos momentos de decisão que são fundamentais para sua a própria solvabilidade futura: celebração de acordos (mesmo que parciais) de pagamento de dívidas, restruturações de créditos, processos de constituição ou reforço de garantias, inter alia. Precisamente por isso, o lastro existente pode ser pernicioso: existem já muitas empresas que beneficiando de apoios do Estado, quer por via directa (através dos financiamentos com garantia soberana), quer por via indirecta (através do já mencionado layoff simplificado) foram apresentadas à insolvência por iniciativa, até, dos próprios credores. Urge, então, considerar se, no limite, todo este quadro de pandemia, de estado de calamidade, de estado de emergência e, agora, de abertura de portas e de regresso à normalidade possível pode de alguma forma ser utilizado como forma de exclusão da culpa ou das responsabilidades desses mesmos dirigentes.
Neste ensejo, é necessário realçar a estabilidade das relações e acordos com manutenção das responsabilidades dos dirigentes, sendo que as opções destes em ambiente de crise podem ser questionadas, nomeadamente no momento de escolha dos pagamentos a efectuar a credores. Quando falamos em responsabilidades dos dirigentes das empresas estamos a analisar um quadro plúrimo que acaba por estabelecer vários pontos de contacto com modelos sancionatórios próprios: i) responsabilidade emergentes do processo de qualificação de insolvência prevista no CIRE; ii) crimes falimentares (com a consideração individualizada da insolvência dolosa, insolvência negligente, frustração de créditos, favorecimento de credores, inter alia); iii) responsabilidades emergentes em sede de branqueamento de capitais; iv) responsabilidades por dívidas fiscais; v) responsabilidade por dívidas aos trabalhadores e por eventuais violações do RGPD.
No âmbito dos procedimentos legais de recuperação de empresas e da consideração de um quadro legal do regime insolvencial, existe um posicionamento tradicional fortemente enraizado na tradição legal portuguesa de construir uma separação artificial entre aquilo que é a previsão legal de um conjunto de responsabilidades emergentes do processo de qualificação da insolvência e aquilo que são as responsabilidades emergentes a um nível penal (crimes falimentares supra referidos).
Nesta senda, o próprio artigo 185.º do CIRE, referente ao processo de qualificação de insolvência, estipula que a insolvência é considerada como culposa ou fortuita, mas a qualificação atribuída não é vinculativa para efeitos da decisão de causas penais, nem das açcões a que se reporta o n.º 3 do artigo 82.º (de eventual responsabilidade civil). Em termos práticos, é patentemente claro o desígnio do legislador no sentido de não ser vinculativa a decisão do incidente regulado no título VIII do referido compêndio legislativo para efeito de instauração e prosseguimento do atinente processo criminal.
Deste modo, não é necessário que a insolvência haja sido qualificada como culposa para que o procedimento criminal, relativamente ao crime previsto no artigo 227.º do CP, possa ser tramitado. De igual forma, ainda que a insolvência tenha sido qualificada como culposa, nada obsta à prolação, pelo MP, no fim do inquérito, de despacho de arquivamento; por fim, a designação da insolvência de fortuita não impede a dedução de acusação. Este desdobramento legal do referido conceito atestaria, pelo menos num plano teórico, a separação entre estes dois mundos (o do CIRE e o do Código Penal).
No entanto, se a porta da comunicabilidade entre o processo de insolvência e os tipos legais previstos no Código Penal parece estar fechada, a verdade é que o legislador deixou uma janela para lá de entreaberta. De facto, o artigo 297.º do CIRE, referente à indiciação da infracção penal, consagra que logo que haja conhecimento de factos que indiciem a prática de qualquer dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal, deve o juiz dar conhecimento da ocorrência ao Ministério Público, para efeitos do exercício da acção penal. E, mais, sendo a denúncia feita no requerimento inicial, são as testemunhas ouvidas sobre os factos alegados na audiência de julgamento para a declaração de insolvência, extractando-se na acta os seus depoimentos sobre as matérias em causa. Desses mesmos depoimentos é extraída certidão, ordenando-se a sua entrega ao Ministério Público, conjuntamente com outros elementos existentes, nos termos do disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 36.º também do CIRE. Daí que, na verdade, estamos perante aquilo que é, especialmente no caso do número 2 do artigo 297.º do CIRE, um verdadeiro pré-inquérito, com a prática e elaboração de actos investigatórios e cujas conclusões serão utilizadas como elementos (a questão será saber se preponderantes ou não) em futura sede de acção penal.
Precisamente por isso, há que reconhecer que para lá das exigências próprias da sistematização de cada um dos regimes (de qualificação de insolvência e dos crimes falimentares) existe a possibilidade, conscientemente tomada, de facultar, entre eles, uma comunicabilidade operativa. Isto tem, claro está, uma consequência directa para todos os dirigentes: um plus de exigência relativamente aos limites dos seus comportamentos e da sua actuação.
Qual a solução, então, para os dirigentes das empresas tendo em conta este cenário de possível reforço das suas responsabilidades? Parece-nos que numa situação de urgência e se não existirem condições para recorrer a um procedimento de recuperação, os acordos (pagamento parcial de dívidas) ou reestruturação de créditos com o reforço de garantias, a que fizemos menção supra, não terão a salvaguarda das operações efectuadas ao abrigo de um PER (ou RERE), que isente os dirigentes de responsabilidades pelas opções tomadas. Daí que a adopção de um planeamento numa óptica de recuperação preventiva (recurso ao RERE ou PER) poderá ser a única solução para reduzir /anular os riscos da actuação dos dirigentes das empresas.
António Raposo Subtil, Sócio Fundador RSA, Coordenador da RSA LP.
João Luz Soares, Advogado Associado Principal
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