
O impacto pós Covid-19 nos Seguros
O impacto pós Covid-19 nos Seguros
Ainda que não tenhamos, propriamente, uma bola de cristal, consideramos oportuno ensaiar uma reflexão sobre o futuro do sector segurador num cenário pós Covid-19.
Tendo em conta que a doença Covid-19 assume uma escala global, não afectando apenas Portugal, importa transmitir uma visão também global, desde logo europeia, admitindo que os problemas e as propostas da sua solução sejam comuns ao mercado português.
Façamos, em primeiro lugar, uma comparação entre a crise de 2007/2008 e a que actualmente vivemos, resultante da doença Covid-191 (neste caso, ainda em curso, pelo que não conhecemos ainda os efeitos em toda a sua extensão):

Independentemente das diferenças que possam existir entre uma e outra crise2, importa perceber que dúvidas se suscitam nos cidadãos e empresas sobre o funcionamento dos seguros no quadro da pandemia. Segundo um estudo da Deloitte3, as principais dúvidas, por tipo de seguro, seriam:
- Seguros de saúde: os tratamentos da doença Covid-19 vão ter cobertura?
- Seguros de viagem: vamos ter cobertura, se a viagem for cancelada?
- Seguros de perdas de exploração (Business Interruption): serão assumidas as perdas derivadas do encerramento forçado da actividade, da demora na recepção de matérias primas e mercadorias, da demora no fabrico, de despesas imprevistas?
- Seguros de responsabilidade civil: ficam cobertas as responsabilidades de administradores e gerentes de sociedades pela falha ou omissão na adopção de qualquer medida preventiva da doença?
- Seguros de crédito: até quando ficam asseguradas as insolvências dos fornecedores?
- Seguros de pessoas: serão recebidas indemnizações por incapacidades permanentes resultantes da doença Covid-19?
- Ciberseguros: ficam garantidos os ataques ao sistema informático da empresa, a funcionar em teletrabalho?
- Seguros de vida: na contratação de novos seguros, serão excluídas as consequências da doença Covid-19?
- O sector segurador em geral, ou a minha seguradora em particular vão conseguir aguentar esta crise?
Uma dúvida que se suscita entre os mediadores de seguros é a de como reagir à maior agressividade na distribuição de seguros pela Banca (bancassurance), perante o cenário em que muitas das ajudas dos governos (v.g. financiamentos com garantia mútua) estão a ser canalizadas através dos bancos e o cliente bancário, especialmente a empresa, para poder recebê-las, é forçado a contratar os seguros que os bancos lhes imponham. Outra dúvida ou incerteza que paira na mente dos mediadores é a de saber se o seu modelo de negócio, baseado na proximidade e no contacto pessoal com o cliente, poderá estar a desaparecer.
Noutra vertente, uma vez que os períodos de lockdown na Europa coincidiram com as datas de apresentação de contas e de reportes aos supervisores, seguindo uma orientação da EIOPA muitos supervisores permitiram uma dilação no prazo de apresentação e de reporte. Essa orientação acarreta que a consolidação dos resultados do exercício de 2019 acabe por ficar muito influenciada pela nova situação excepcional4.
Por outro lado, o impacto da paragem da economia é diferente se estamos perante seguradoras que trabalham nos ramos directamente afectados, como saúde, despesas de funeral, crédito ou, ao invés, nos ramos em que a actividade segurada ficou paralisada e em que os segurados puderam reclamar a devolução dos prémios (por exemplo, no ramo automóvel)
Outra questão social que tem um reflexo directo na indústria seguradora é a mudança dos hábitos de trabalho. O teletrabalho veio para ficar. Como tem reagido a indústria seguradora?
A indústria dos seguros já tinha planos para o exercício de actividade “fora do escritório” (não apenas nas plataformas de call center, mas também noutras áreas).
De harmonia com um estudo do think tank Community Of Insurance5, o sector tem actuado em tempo record, reduzindo os prazos previstos na digitalização e aumentando a importância dos modelos de Inteligência Artificial. Nos períodos de lockdown, quase 98% dos trabalhadores das seguradoras na Europa trabalharam em teletrabalho e, mesmo após tais períodos, muitas seguradoras têm mantido entre 35% e 50% dos seus trabalhadores em teletrabalho.
É importante realçar que, as seguradoras têm conseguido não apenas atender os pedidos dos seus segurados actuais6, mas também acorrer à nova produção, ainda que neste caso tenha havido uma quebra acentuada, de cerca de 75%.
Concretamente no caso da nova produção, mesmo em lockdown as seguradoras não deixaram de fazer scoring, ainda que ajustado à nova realidade: nos seguros de vida, com pré selecção online, aceitação da assinatura electrónica na apólice e envio digitalizado das condições da apólice; nos seguros não vida, com recurso ao vídeo na vistoria prévia, feito inclusive pelo próprio segurado e até mesmo com dispensa da vistoria.
No que tange aos sinistros, se fizermos uma abordagem superficial às contas de resultados das seguradoras, podemos facilmente ser induzidos em erro pela evolução da sinistralidade. Na verdade, se as actividades pararam, pode parecer lógico que haja uma quebra na ocorrência de sinistros. Todavia, situações terão havido em que pode ter ocorrido o sinistro, mas não a sua participação. Esta possibilidade pode distorcer as contas. Houve certamente uma redução da sinistralidade automóvel mas terá aumentado o número de sinistros na habitação.
No que se refere às perdas de exploração bem como aos seguros de crédito, haverá que aguardar pela evolução da economia pois a incerteza e a imprevisibilidade ainda são muito grandes.
Os seguros de capitalização serão, na nossa opinião, os grandes perdedores com a doença do Covid-19, por vários motivos: aumento expressivo dos resgates; persistência de taxas pouco atractivas; prováveis reformas fiscais dos Estados penalizadoras de tais seguros, para devolverem as ajudas que recebem da UE; prováveis medidas de estímulo ao consumo e consequente redução da poupança; quebra na capacidade de poupança das famílias.
Poder-se-ia pensar que o ramo mais prejudicado pela pandemia seria o dos seguros de saúde. Esta percepção é, no entanto, errada. O que é facto é que as pessoas têm adiado consultas médicas, exames e cirurgias, mesmo programadas, seja por indisponibilidade dos centros de saúde e dos serviços médicos durante o período de lockdown, seja por receio de serem contagiadas, mesmo já após esse período. Na Europa, contrariamente ao que sucede por exemplo nos EUA, os serviços públicos de saúde têm assegurado cerca de 80% dos internamentos com a doença Covid-19, o que criou mais disponibilidade para os serviços privados de saúde atenderem pacientes com outras doenças, com a consequente e esperada contratação de mais seguros de saúde.
Uma palavra quanto ao papel das resseguradoras. A crise provocada pela doença de Covid-19 surge num período de grande capitalização das resseguradoras e, de um modo geral, estas estão a aguentar a situação – o impacto no resseguro, a nível global, é de apenas 7%. A questão está em que muitas seguradoras não estão a aplicar as normas de exclusão da pandemia constantes das apólices e essa sinistralidade nem sempre poderá ser repassada para a resseguradora.
Podemos, em síntese, dizer que a indústria seguradora tem mostrado um forte sentido de solidariedade (não exclusões, comparticipação em testes, etc) e mantido níveis de solvência adequados: as quedas de sinistralidade nalguns ramos compensa o aumento de despesas com sinistros noutros. A capacidade das seguradoras suportarem o impacto da pandemia vai depender dos níveis de solvência de cada uma e também de a resseguradora aceitar que a seguradora esteja a dar cobertura a riscos excluídos.
Podemos também antecipar uma acelerada “digitalização” da sociedade: recurso generalizado à telemedicina e à telefarmácia; atendimento psicológico telefónico ou por videoconferência.
Estão a ser desenvolvidos novos produtos de seguros de saúde por força da pandemia.
De um modo geral, por toda a Europa têm sido permitidas moratórias no pagamento dos prémios de seguro e o sector não tem estado a agravar os prémios nas renovações.
Finalmente, os distribuidores de seguros na mediação terão que encontrar novas formas de estar próximo dos clientes, que complementem o contacto pessoal.
1 https://www.pwc.es/es/covid/assets/impacto-sector-asegurador-pwc.pdf
2 O Lloyd´s tem reportado quedas históricas no sector – https://www.lloyds.com/news-and-risk-insight/press-releases/2020/05/covid19-will-see-historic-losses-across-the-global-insurance-industry
3https://www2.deloitte.com/content/dam/Deloitte/es/Documents/legal/Impacto%20Seguros.pdf. Veja também https://www.hoganlovells.com/es/publications/newsletter-seguros-covid19
4V.g. a distribuição de dividendos aos accionistas, as reservas de sinistros, as provisões matemáticas, etc.
5 https://communityofinsurance.es/2020/04/19/covid-19-impacto-y-perspectivas-para-el-seguro/
6 Televistoria, teleperitagem, envio de técnicos, tanto por meio dos prestadores de serviço como com recurso aos meios digitais dos próprios segurados, etc.
“O impacto pós Covid-19 nos Seguros”, por Manuel Camarate Campos, sócio na RSA e co-coordenador do Núcleo de Direito Bancário e Seguros, e César Garcia consultor Jurídico na RSA.
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