
A Tutela do Destinatário Final da Mercadoria
A Tutela do Destinatário Final da Mercadoria
Face ao período em que vivemos por influência do surto pandémico da COVID-19, prevê-se um crescimento exponencial das compras online. Com efeito, os nossos hábitos de consumo mudaram e, adquirir produtos através dos canais digitais é hoje uma prática cada vez mais comum e, recorrente.
Ao mesmo tempo que os portugueses aderem, progressivamente, às compras online, surge também um aumento significativo do número de reclamações associadas a esta prática, relacionadas com extravios, danos ou demoras, durante o percurso de entrega das mercadorias até à sua chegada ao destinatário final.
Na generalidade, tais reclamações são efetuadas pelo expedidor (quem celebra o contrato de transporte de mercadorias) junto do transportador (aquele que se obriga a deslocar a mercadoria e a entregá-la ao destinatário), contudo, com o considerável aumento de tráfego de encomendas, o chamado destinatário final tem vindo a manifestar o seu desagrado e a reclamar diretamente junto do transportador.
Nesse caso, qual é a responsabilidade do transportador de mercadorias perante o destinatário final das mesmas? A questão além de controversa, ainda não tem acolhimento direto na lei e assenta basicamente, na discussão em torno da natureza jurídica do contrato de transporte de mercadorias.
No ordenamento jurídico português, o contrato de transporte de mercadorias rodoviário encontra-se regulado no regime estabelecido no Decreto-lei n.º 239/2003 de 04 de outubro, o qual n.º 1 do artigo 2.º define tal contrato, como sendo aquele que é “celebrado entre transportador e expedidor nos termos do qual o primeiro se obriga a deslocar mercadorias, por meio de veículos rodoviários, entre locais situados no território nacional e a entrega-las ao destinatário.”.
Habitualmente, o contrato de transporte de mercadorias é concebido como um contrato de estrutura bilateral, celebrado entre o expedidor e o transportador, porém, nesta relação (expedidor/transportador) pode surgir um terceiro elemento de cariz subjetivo: o destinatário final da mercadoria.
Efetivamente, se há situações em que o expedidor e o destinatário coincidem na mesma pessoa ou entidade (quando por exemplo pertencem ao mesmo grupo empresarial), porém e, na maior parte das vezes, estes dois intervenientes não coincidem entre si, pelo que se questiona se, nesses casos, o contrato de transporte de mercadorias é considerado como sendo de estrutura bilateral ou de estrutura trilateral, na medida em que o mesmo pode gerar direitos e deveres para o dito destinatário final da mercadoria.
A questão é relevante atendendo à existência de alguma discussão gerada em torno daquela que será a posição jurídica que tal destinatário final da mercadoria, ocupa nesse contrato, sendo que, atualmente existem duas teorias mais predominantes.
A primeira delas, de uma forma resumida, sustenta que tal contrato se enquadra no regime do contrato a favor de terceiro, assumindo o destinatário o papel de terceiro beneficiário, pois permite a este adquirir o direito à mercadoria ab initio e, permite-lhe ainda exigir, entre outros direitos, o cumprimento ao transportador. Pelo que, o regime deste contrato, para os defensores de tal tese, assegura de forma suficiente os direitos do destinatário final da mercadoria.
Por outro lado, a segunda teoria defende que o contrato de transporte de mercadorias pode ser considerado, na sua natureza, como um contrato trilateral, dando origem a vínculos contratuais não apenas entre o expedidor e o transportador, mas também entre este e o destinatário final da mercadoria. De acordo com esta segunda corrente e, pese embora, o contrato de mercadorias se apresente, numa fase inicial, como um contrato bilateral, existe a expectativa de que o destinatário venha aderir ao contrato, e com essa adesão, deixe de ser um terceiro e passe a ser parte integrante do mesmo.
Independentemente das críticas e reservas que possam merecer qualquer uma das duas teorias ou teses, supra referenciadas, certo é que, o resultado final será sempre o mesmo, ou seja, o destinatário da mercadoria terá direito a, com base no contrato de transporte, reclamar/demandar diretamente o transportador para exigir o cumprimento ou indemnização por incumprimento.
Assim e, respondendo agora questão acima colocada, de acordo com a doutrina e jurisprudência dominante, o transportador é responsável perante o destinatário final da mercadoria, em caso de incumprimento do contrato de transporte de mercadorias, figurando como “beneficiário terceiro” ou como “parte”, dependendo da tese acolhida.
E chegados aqui, surge-nos uma outra questão, qual a proteção jurídica do transportador perante a obrigação de indemnizar um terceiro, o destinatário da mercadoria, com o qual não possui qualquer vínculo contratual?
O legislador, no preâmbulo do Decreto-lei n.º 239/2003 de 04 de outubro, refere que o regime jurídico do contrato de transporte de mercadorias, à data, encontrava-se totalmente desajustado e desatualizado face à evolução técnica, económica e social, porém, volvidos quase vinte anos, tal diploma mostra-se novamente desadequado à nova realidade que vivemos.
Por conseguinte, é fulcral rever e alterar os mecanismos de proteção de todas as partes envolvidas nesta dinâmica, sob pena de, numa tentativa de proteção do suposto elo mais fraco, serem criados ainda maiores desequilíbrios, pois as construções lógica-jurídicas supra referenciadas, fazem resultar uma posição no contrato de transporte de mercadorias, para quem não teve qualquer participação, nem na formação, nem na execução de tal contrato.
“A Tutela do Destinatário Final da Mercadoria“, por Lina Esteves, Advogada Associada na RSA.
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