
A Criminalização da Corrupção no Sector Privado
A Criminalização da Corrupção no Sector Privado
Durante muito tempo o crime de corrupção foi um crime de funcionário. Isto é, na sua vertente passiva, o agente tinha que deter a qualidade de funcionário que a troco de vantagem patrimonial indevida favorecia legal ou ilegalmente um particular. Este desenho tradicional da tipicidade da conduta teve que ceder, como tantos outros institutos, às exigências, cada vez mais prementes, de adaptação da ordem jurídica à evolução vertiginosa do ambiente económico no pós guerra fria. Na origem da tipificação como crime do oferecimento ou recebimento de vantagens a troco do favorecimento de entidade particulares está, precisamente, a viciação das regras do jogo do comércio privado que a globalização dos mercados e o aperfeiçoamento dos modelos de negócio agudizou.
Como em tantas outras inovações legislativas no nosso ordenamento, também esta tem origem comunitária, no caso a Convenção Penal sobre a Corrupção, do Conselho da Europa, de 30 de Abril de 1999, que estabelece os princípios subjacentes à criminalização. Na esteira desta é publicada a Lei n.º 108/2001 de 28 de Novembro, que aditou os artigos 41.º-B e 41.º-C ao Regime das Infracções Antieconómicas e Contra a Saúde Pública, introduzindo no ordenamento penal português os crimes de corrupção passiva no sector privado e de corrupção activa no sector privado. Após uma série de peripécias, o novo tipo incriminador iria estabilizar por via da Lei n.º 20/2008, de 21 de Abril que publicou o Regime Penal de Corrupção no Comércio Internacional e no Sector Privado, dando cumprimento ao determinado na Decisão Quadro n.º 2003/568/JAI, do Conselho, de 22 de Julho.
Já não sendo propriamente uma novidade, por força de uma parca aplicação nos nossos tribunais esta incriminação permanece numa certa obscuridade motivo pelo qual faremos uma breve incursão pelas características essenciais da tipificação do crime de corrupção privada deixando de lado, por ora, a corrupção no comércio Internacional.
Começando pelo bem jurídico tutelado, que tem levantado algumas dificuldades à doutrina, diremos resumidamente que enquanto na incriminação clássica da corrupção está em causa a autonomia intencional do estado aqui, visa-se protegem a lealdade e a confiança no comércio privado cuja violação pode levar à distorção das regras do mercado. Esta concepção mais restritiva (por retirar a concorrência da protecção visada pela norma) foi a acolhida pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06-03-2013 prolatado no processo n.º 269/10.2TAMTS.P1 que decidiu «O bem jurídico tutelado pelos crimes de Corrupção ativa no setor privado e de Corrupção passiva no sector privado, dos artigos 8º e 9º da Lei n.º 20/2008, de 21 de abril, é a lealdade e a confiança imprescindíveis para as relações privadas, já que o núcleo do injusto reside na violação dos deveres funcionais por parte do trabalhador do sector privado».
Em nosso entender, trata-se de um crime de dano porque exige uma efectiva ofensa à lealdade e confiança na empresa, não bastando o mero perigo desta ocorrer.
Quanto aos requisitos do tipo, comete o crime de corrupção passiva no sector privado o trabalhador que, per se ou através de um terceiro com o seu consentimento prévio ou aprovação posterior, solicitar ou aceitar, para ele próprio ou terceiro, uma vantagem patrimonial ou não patrimonial indevida, seja actual, seja prometida, para que pratique um acto ou omissão violador dos seus deveres funcionais – cfr. artigo 8.º, do RPCCISP.
Na sua forma simples é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias, mas se o acto ou omissão do trabalhador for idóneo a causar uma distorção da concorrência ou prejuízo patrimonial para terceiros, a sanção é agravada para pena de prisão de um a oito anos. Note-se que não se exige que o acto ou omissão do trabalhador cause uma efectiva distorção da concorrência ou prejuízo a terceiro, bastando que seja apta a fazê-lo para que a agravação seja aplicável.
Para efeitos da incriminação na forma passiva, entende-se por trabalhador do sector privado «a pessoa que exerce funções, incluindo as de direcção ou fiscalização, em regime de contrato individual de trabalho, de prestação de serviços ou a qualquer outro título, mesmo que provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, ao serviço de uma entidade do sector privado». Por seu lado, entidade do sector privado é «a pessoa colectiva de direito privado, a sociedade civil e a associação de facto», o que praticamente abrange todas as pessoas jurídicas não públicas. Note-se que mesmo quando a prestação de funções pelo agente passivo sejam a título gratuito, por exemplo um voluntariado, a conduta é punível.
O crime de corrupção activa no sector privado é cometido por quem der ou prometer dar a um trabalhador do sector privado ou a um terceiro com conhecimento e aprovação do trabalhador, vantagem patrimonial ou não patrimonial indevida, para que o trabalhador pratique um acto ou omissão violador dos seus deveres funcionais. Também aqui o agente pode agir por si ou por intermédio de terceiro, cuja conduta tem que ser consentida pelo agente, seja a anteriori, seja a posteriori. – cfr. artigo 9.º, do RPCCISP.
A corrupção activa na forma simples é punida com pena de prisão até três anos ou com pena de multa, sendo que, quanto a esta, não é fixado um limite máximo, mas também há lugar à agravação se a conduta visar obter ou for idónea a causar uma distorção da concorrência ou prejuízo patrimonial para terceiros, aumentando a moldura para prisão até cinco anos ou pena de multa até 600 dias.
O número 3 do artigo 9.º estabelece que a tentativa é punível, o que na prática significa que não tem que haver a aceitação da vantagem pelo trabalhador, bastando que o agente a ofereça para que a sua conduta seja punível. Inversamente, é óbvio que a punibilidade do trabalhador implica a efectiva aceitação por este da vantagem.
Uma nota final, para salientar que as penas aqui cominadas apenas são aplicáveis se ao facto não couber pena mais grave por força de outra disposição legal, em especial do Código Penal. que tem aplicação no que não estiver previsto no regime, nomeadamente toda a parte geral (artigo 6.º) e que as pessoas colectivas e entidades equiparadas são responsabilizáveis pelos delitos do regime, nos termos gerais, ou seja, nos termos do artigo 11.º do CP (artigo 4.º).
Com a introdução deste tipo de ilícito, condutas outrora toleradas são hoje merecedoras de censura jurídico-penal. Não faltam exemplos de situações que recaem na alçada do regime: é o caso de um quadro de empresa em posição de chefia ou direcção que aceita um suborno (a vantagem patrimonial ou não patrimonial) para contratar um determinado prestador de serviços em regime de outsorcing.
Sou de opinião que o sancionamento da conduta é, comparativamente, mais severo que muitos outros tipos da criminalidade económica e que é questionável a opção do legislador pela agravação por distorção da concorrência quando esta não é directamente sancionada com pena privativa da liberdade e a média das penas aplicáveis aos crimes económicos é sensivelmente menor que os oito anos aqui aplicáveis. O sancionamento é mesmo mais grave que alguns crimes que tutelam as pessoas. Sinal dos tempos.
“A Criminalização da Corrupção no Sector Privado”, por Manuel Nobre Correia, Advogado Associado Principal
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