
(Ainda) As contra-ordenações no branqueamento de capitais
(Ainda) As contra-ordenações no branqueamento de capitais
O caminho trilhado pela Lei 83/2017 é, agora, consubstanciado pela nova Lei 58/2020 que continua a propugnar um modelo sancionatório baseado num modelo tripartido: previsão de ilícitos criminais; previsão de ilícitos contraordenacionais; e, por último, previsão de ilícitos disciplinares. No entanto, e para lá do que é uma clássica divisão entre crimes e contraordenações, profundamente enraizada na tradição penal portuguesa, como aquilatar as características próprias deste(s) modelo(s) e aquilo que parece ser um fortalecimento da previsão dos ilícitos contraordenacionais?
De facto, muitas contra-ordenações têm, na prática, consequências bem mais gravosas para os arguidos e condenados que as advenientes das penas (principais, acessórias ou de substituição) e das medidas de segurança. Por outro lado, nota-se, nomeadamente para as profissões jurídicas que lidam de perto com esta realidade, que existe um aumento exponencial da sensibilidade dos agentes, entidades e clientes, e uma preocupação com os processos tramitados, instruídos e decididos junto das entidades supervisoras (BdP, CMVM, inter alia). Ainda nesse sentido, veja-se que o quadro das sanções acessórias propugnadas pelo regime contraordenacional (lastro mais profundo), também nestas leis 83/2018 e 58/2020, acaba por revelar consequências directas de modificações concretas nas vidas profissionais dos agentes e que têm, portanto, um impacto mais imediato. Precisamente por isso, tem vindo a germinar uma discussão profícua acerca da necessidade de diferenciação entre um regime das contraordenações dito “normal” e um regime das “grandes contraordenações”, por referência aos valores das coimas. Para além dessa consideração, que por si só justificaria um outro artigo, a verdade é que o RGCO tem tido um âmbito de actuação cada vez mais limitado, com o surgimento de regimes sancionatórios sectoriais próprios amiudadas vezes em contradição com o regime geral, em flagrante violação dos mais basilares princípios gerais de Direito (recorribilidade ou não das decisões para a Relação; in casu, como veremos, a existência ou não da garantia da proibição da reformatio in pejus; garantias mais ou menos amplas do arguido, etc). No fundo, a pergunta é clara: estamos perante casos limite em que os ilícitos contra-ordenacionais se afirmam como delitos travestidos de ilícitos de mera ordenação social?
A Lei 83/2017 previa um catálogo de 95 contraordenações que, entretanto, foi reduzido para 12 contraordenações na Lei 58/2020, ainda que, na verdade, se introduzisse um novo artigo (169.º-A) relativo à categoria das contraordenações especialmente graves. No entanto, o novo catálogo deixou uma porta aberta ao consignar uma cláusula de atipicidade (na alínea l) do mencionado artigo) em que quaisquer outras situações ali não previstas, desde que possivelmente violadoras do regime de BC/FT, podem ser consideradas como contraordenações muito graves para efeitos daquele regime. A transformação não passou, por isso, de cosmética legislativa mantendo-se o regime anteriormente previsto com os seus traços essenciais.
Obviamente que a prática jurídica no tratamento destas questões vem demonstrar já, e em correlato apuramento de feedback junto das entidades obrigadas, de alguns obstáculos inegáveis, que se consubstanciam numa dificuldade de compreensão do catálogo de contraordenações existente. E esta dificuldade repercute-se em três níveis diferenciados. A dificuldade de implementação e previsão, a montante, por parte das entidades obrigadas. A dificuldade, a jusante, das entidades competentes em subsumirem os eventuais comportamentos violadores ao catálogo existente. E, ainda, num terceiro nível cúpula, problemas de definição de competência instrutória e decisória dos processos. Em suma, uma complexificação desnecessária dos processos de operacionalização.
Esta discussão ganha ainda mais força quando nos principais ilícitos criminais, quer da divulgação ilegítima da informação, quer no caso da revelação ou favorecimento da descoberta da identidade, estamos a falar de molduras penais, no caso de pessoas singulares, com previsão de pena de prisão até três anos ou com pena de multa, nos termos gerais e, no caso das pessoas colectivas, de pena de multa com um limite mínimo não inferior a 50 dias. A que se contrapõem, no caso das contraordenações, a coimas que podem chegar, se a violação for praticada no âmbito de actividade de instituição de crédito ou instituição financeira, a coimas de € 5.000 000 (se o agente for uma pessoa coletiva ou entidade equiparada a pessoa coletiva).
Nas linhas de tensão entre o Direito Penal e o Direito de Mera Ordenação Social, a previsão deste quadro contraordenacional, principalmente com os valores referidos, acaba por agudizar o fosso existente. Estamos, na verdade, a falar de valores extremamente pesados que têm, na face da moeda, ilícitos criminais com previsão de molduras até 03 anos. Existe, assim, uma subversão do que é aquela consideração indicativa defendida pelo critério do interesse juridicamente relevante, sendo que com esta disparidade entre as baixas molduras penais previstas para os ilícitos criminais versus coimas de montante elevado (e passíveis de agravamento), sempre será difícil defender qualquer equilíbrio possível. Ultime, e por absurdo, quase que é “preferível” (com toda a cautela) para um determinado agente sofrer as consequências advindas de um daqueles 03 crimes previstos supra pela Lei 83/2017, do que, na verdade, sofrer as consequências de uma qualquer coima que, no limite, pode atingir os €5.000.000,00. Mas tal é ainda mais pernicioso, quando o Regulamento 276/2019 faz um alargamento subjectivo daquilo que são as entidades obrigadas, incluindo no respeito pelas obrigações propugnadas por esta rede legal, PME’s, empresas de mediação mobiliárias e outras que, naturalmente, não terão a flexibilidade, envergadura e o suporte jurídico, financeiro e contabilístico para lidar com este tipo (valor) de coimas. Mas é esta falta de sensibilidade (autismo legislativo) que, neste vector, se evidencia, com consequências claras intrasistema, que constituem, desde logo, uma enorme fragilidade na operacionalização do presente quadro legal.
(Ainda) As contra-ordenações no branqueamento de capitais, por João Luz Soares Advogado Associado Principal.
Latest Posts
Resumo Editorial 2020
A RSA-LP faz opinião! Conheça o nosso resumo editorial 2020....
Resumo Editorial 2020
Tribunais de comércio podem ajudar a viabilizar empresas
“Só a criação de um verdadeiro sistema nacional de justiça (SNJ) poderá evitar que no pós-Covid a maioria das micro e pequenas empresas...
Tribunais de comércio podem ajudar a viabilizar empresas
Fundo PME para registo de marcas, desenhos ou modelos
A situação de calamidade pública, ocasionada pela Covid-19, exigiu a aplicação de medidas extraordinárias urgentes e a restrição de direitos,...