
A representação irregular de sociedade em atos comerciais vincula a sociedade?!

A representação irregular de sociedade em atos comerciais vincula a sociedade?!
Trazemos à discussão o tema da vinculação das empresas perante terceiros, cujo celeuma causado no seio da jurisprudência e, também, no âmago da doutrina, não esmoreceu pese embora a longeva vinheta do tema, sendo constante causa de litígio.
Recorde-se, desde logo, que na celebração de negócios e perante quaisquer terceiros, as sociedades comerciais se fazem representar pelos respetivos órgãos de gestão, nas pessoas dos gerentes ou administradores nomeados para o cargo.
O dissenso prende-se, essencialmente, com a questão de saber se a intervenção de um gerente (ou administrador) é suficiente para vincular uma sociedade comercial perante terceiros, caso estejamos perante uma estrutura de gerência ou administração plural, em que, tanto no pacto social, como na correlativa certidão permanente expressão da sua situação jurídica, seja consagrado que a sociedade comercial se vincula pela intervenção de uma determinada maioria ou número de gerentes (ou administradores) e, por isso, seja necessária, em abstrato, a intervenção daqueles para que ocorrer a vinculação regular.
Esta situação vem tratada, nas sociedades por quotas, nos artigos 260.º e 261.º do Código das Sociedades Comerciais (“CSC”) e, nas sociedades anónimas, nos artigos 408.º e 409.º do CSC. Em termos gerais, se nada for previsto no pacto social, a regra supletiva, nas sociedades por quotas, é de que a sociedade se vincula pela intervenção da maioria dos gerentes e, nas anónimas, aplicar-se-á o mesmo racional.
Adiante, enquanto nas sociedades por quotas é conferida a faculdade de se poder estipular um número superior ou inferior à maioria de gerentes para atingir a vinculação idónea da sociedade, nas anónimas, apenas existe a liberdade de se fixar um número inferior à maioria.
Importa fazer notar que os artigos 260.º e 409.º, ambos do CSC, dispõem quanto à extensão dos poderes de representação dos membros de órgãos de gestão, ou seja, sobre os atos que estes têm ou não competência para praticar, nomeadamente, aqueles que extravasem o objeto social da sociedade, cujos citados preceitos, por sinal, foram decalcados do artigo 9.º da Primeira Diretiva 68/151/CEE do Conselho, de 9 de março de 1968, transposta para a ordem jurídica portuguesa. Neste particular, a falta de representação regular em virtude da violação da extensão dos poderes de representação é oponível a terceiros, tendo, no entanto, de ser provado que o terceiro sabia ou não podia ignorar, tendo em conta as circunstâncias, que o ato praticado não respeitava essa cláusula e se, entretanto, a sociedade o não assumiu, por deliberação expressa ou tácita dos sócios, conforme artigo 260.º, n.º 2, do CSC.
Contudo, os artigos 261.º e 408.º do CSC versam sobre a modo de exercício da representação, ou seja, a forma de praticar atos vinculantes perante terceiros.
Neste sentido, entendemos sustentar, em abono do princípio da segurança jurídica, que a representação irregular na forma de exercício de representação, causada pela falta da intervenção dos gerentes ou administradores necessários para assegurar a maioria ou determinado número estipulado do órgão de gestão conforme estipulado no pacto social, apesar de, contribuir para negócio substancialmente válido, resulta na consequência da ineficácia do ato em relação à sociedade, pelas seguintes ordens de razão.
Em primeiro lugar, pela letra dos artigos 261.º e 408.º do CSC, bem como, pelo facto de o acesso às certidões comerciais das entidades ser hoje democratizado em virtude do seu suporte eletrónico, sendo facilmente acessíveis a terceiros que, por sua vez, poderão confirmar qual a forma de vinculação da entidade.
E, em segundo lugar, através da hermenêutica teleológica, concluímos que a necessidade de garantir a segurança no comércio jurídico e a tutela da confiança dos agentes que atuam no mercado são exatamente as mesmas razões fundantes da norma extraída do artigo 260.º, n.º 2, do CSC. Ademais, numa perspetiva sistemática, cumpre sublinhar que o artigo 9.º da referida Diretiva inclui tanto limitações objetivas (decorrentes da lei) como limitações subjetivas (decorrentes do contrato de sociedade ou deliberações sociais) aos poderes de vinculação, pelo que, não concebemos justificação para não estender o âmbito de aplicação dos artigos 260.º, n.º 2, e 409.º, n.º 2, do CSC, quer a objetivas (decorrentes da lei) como limitações subjetivas (emergentes do pacto social ou deliberações sociais) aos poderes de vinculação.
Face ao exposto, somos de defender a oponibilidade da ineficácia de atos praticados por sociedade irregularmente representada, decorrentes da falta de intervenção de uma determinada maioria de gerentes, se o contrato assim o exigia.
Assim, compreendendo sumariamente o regime legal em vigor, quid iuris quanto à questão da forma de exercício dos poderes de representação, caso ocorra uma situação de representação irregular traduzida na falta de intervenção da maioria ou do número necessário estipulado para o efeito no contrato de sociedade?
A título de exemplo, consideremos que, numa determinada sociedade comercial por quotas imobiliária (com objeto social típico de compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim), estaria estipulado no pacto social que a sociedade se obrigava com a assinatura de dois gerentes. Assumiremos que apenas um dos gerentes interveio na celebração de um contrato de mediação imobiliária com um agente de mediação imobiliária licenciado.
Mais tarde, esta sociedade por quotas vem alienar o imóvel que era objeto do referido contrato de mediação imobiliária, não tendo informado o mediador por ter concluído não estar vinculada perante este visto que, no ato de celebração do contrato de mediação, apenas interveio um dos gerentes, quando a mesma se vinculava com a assinatura de dois e, por isso, teria sido irregularmente representada, rejeitando em consequência todos os efeitos jurídicos do contrato, nomeadamente, recusando-se a pagar a comissão alegadamente devida.
Segundo a tese ora defendida, defendemos que o ato carecerá de eficácia perante a sociedade, aplicando o artigo 260.º, n.º 2, por interpretação extensiva e sistemática.
Sem prejuízo, questão diversa, mas sobejamente prática, é a de saber se pode a sociedade invocar esta ineficácia perante o terceiro; isto é, face ao circunstancialismo, existirá legitimidade para invocar a sua não vinculação, por ser ineficaz; ou haverá abuso do direito por parte da sociedade ao pretender valer-se da ineficácia do negócio jurídico em que interveio apenas um dos seus gerentes?
Dispõe o artigo 334.º do Código Civil que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Para ocorrer o abuso do direito exige-se que haja um excesso manifesto no seu exercício, que ele se exerça com clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante.
Efetivamente, a invocação da falta de poderes do gerente para, por si só, vincular a sociedade pode constituir, em determinado caso, mero pretexto formal para esta se venha eximir ao cumprimento das obrigações que foram assumidas em seu nome e em sua representação.
A título de exemplo, se este gerente era quem personificava a sociedade, quem a geria e a vinculava para com terceiros, perante a inação e persistente alheamento da própria sociedade e demais gerentes, e o terceiro tomando esta informação como certa em virtude de relações comerciais duradouras, a invocação da ineficácia, nesta situação, poderia traduzir-se na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido, constituindo, assim, abuso de direito, afastando a possibilidade de invocar a ineficácia e tendo como consequência a assunção de todos os efeitos jurídicos do ato.
Conclui-se, assim: a representação irregular de sociedade comercial perante terceiros vincula a sociedade? Não, em regra, será ineficaz, seguindo a maioria da jurisprudência, sendo a solução mais ponderosa da segurança jurídica. E pode a sociedade invocar essa ineficácia perante o terceiro para impedir a produção de efeitos jurídicos? A resposta já não consubstanciará a exatidão que se esperaria, não sendo o direito uma ciência exata, ficando, pois, in casu, a solução dependente de uma avaliação casuística.
A representação irregular de sociedade em atos comerciais vincula a sociedade?!, por João Corte Real e Tomás de Almeida Gregório.
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