
Via Verde para a modificação do capital social por deliberação dos credores

A Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20/06/2019, veio, entre outras, definir regras mínimas uniformes, para vigorar em todos os Estados Membros, de reestruturação preventiva do devedor empresa com dificuldades financeiras, caso exista uma probabilidade de insolvência, a fim de evitar a insolvência e garantir a viabilidade do devedor.
Adentro dos objetivos definidos nos seus considerandos a tal propósito, encontramos os de permitir que os devedores empresa se reestruturem numa fase precoce, evitando a insolvência, limitando dessa forma a liquidação desnecessária de empresas viáveis. Pretende-se também evitar a perda de postos de trabalho e de know how, maximizar os benefícios dos credores face ao que receberiam em caso de liquidação de ativos da empresa e prevenir a formação de créditos não produtivos, atenuando o impacto no sector financeiro, agindo atempadamente.
A referida Diretiva foi recentemente transposta para o ordenamento jurídico nacional pela Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro, já em vigor, que procedeu a inúmeras alterações do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
O considerando (96) da mesma Diretiva prescreve entretanto que, “a eficácia do processo de adoção e execução de um plano de reestruturação (no caso português, v.g. um plano de recuperação em Processo Especial de Revitalização – PER) não deverá ser posta em causa pelo direito das sociedades. Assim, os Estados Membros deverão poder derrogar os requisitos estabelecidos pela Diretiva (UE) 2017/1132, do Parlamento Europeu e do Conselho (de 14/06/2017) – que procedeu a uma codificação de determinados aspetos do direito das sociedades, herdeira última da chamada Segunda Diretiva das sociedades (Diretiva do Capital) – respeitantes às obrigações de convocar uma assembleia geral e estabelecer o direito de preferência dos atuais acionistas sobre as ações, na medida e durante o período de tempo necessários para assegurar que os acionistas não comprometam os esforços de reestruturação mediante o exercício abusivo dos seus direitos ao abrigo desta diretiva”.
Em conformidade, o artigo 32º da Diretiva (UE) 2019/1023 procedeu ao aditamento de um nº 1 ao artigo 84º da Diretiva (UE) 2017/1132, através do qual “os Estados Membros derrogam o artigo 58, nº 1, os artigos 68º, 72º, 73º e 74º, o artigo 79º, nº 1 alínea b), o artigo 80º e o artigo 81º, na medida e durante o período necessário em que essas derrogações forem necessárias para o estabelecimento dos regimes jurídicos de reestruturação preventiva previstos na Diretiva (UE) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho”.
Vem isto a propósito das providências específicas atinentes às sociedades comerciais, em particular às sociedades anónimas, no âmbito de um plano de insolvência, aplicáveis aos planos de recuperação em PER, por força do nº 7 do artigo 17º-F do CIRE.
Na verdade, o CIRE preceitua desde sempre, no nº 2 do seu artigo 198º, que podem ser adotados pelo próprio plano de insolvência (ou plano de recuperação em PER):
“a) Uma redução do capital social para cobertura de prejuízos, incluindo para zero ou outro montante inferior ao mínimo estabelecido na lei para o respetivo tipo de sociedade, desde que, neste caso, a redução seja acompanhada de aumento do capital para montante igual ou superior àquele mínimo;
- b) Um aumento do capital social, em dinheiro ou em espécie, a subscrever por terceiros ou por credores, nomeadamente mediante a conversão de créditos em participações sociais, com ou sem respeito pelo direito de preferência dos sócios legal ou estatutariamente previsto;
…
E acrescenta o nº 4 do mesmo artigo que “4 – A aprovação de aumento de capital sem concessão de preferência aos sócios, ainda que por entradas em espécie, pressupõe, em alternativa, que:
- a) O capital da sociedade seja previamente reduzido a zero;
- b) A medida não acarrete desvalorização das participações que os sócios conservem.”
Sucede que, antes das derrogações de normas da Diretiva (UE) 2017/1132, efetuada pelo referido artigo 32º da Diretiva (UE) 2019/1023, a doutrina e a jurisprudência perfilhavam o entendimento de que, no caso das sociedades anónimas, a norma do CIRE acima transcrita que atribui aos credores o poder de aprovar o plano com aprovação de uma modificação do capital social, aumentando-o, contrariaria a Diretiva do Capital, constituindo uma violação clara e manifesta do direito europeu, que estabelece v.g. que “qualquer aumento de capital deve ser deliberado pela assembleia geral” (artigo 68º, nº 1 da Diretiva (UE) 2017/1132).1
Ou que, a eliminação, por parte dos credores, na aprovação do plano, do direito de preferência dos acionistas se traduziria numa solução contrária ao direito europeu previsto na mesma Diretiva, que apenas admite que tal competência possa ser atribuída aos sócios ou ao órgão da sociedade autorizado a decidir o aumento de capital (artigo 72º, nº 1 da Diretiva (UE) 2017/1132).2
Com a entrada em vigor das derrogações, entre outros, dos artigos 68º e 72º da Diretiva (UE) 2017/1132, introduzidas pela Diretiva (UE) 2019/1023, fica definitivamente afastada a controvérsia existente na doutrina e a jurisprudência sobre a aprovação de planos (de insolvência ou de recuperação em PER) contendo deliberações de aumento de capital sem respeito pelo direito de preferência dos acionistas. Fica assim criada uma verdadeira Via Verde para a modificação do capital social de sociedades anónimas pelos credores, na aprovação de planos de insolvência em processo de insolvência, ou de recuperação em PER.
1 Vidé Paulo de Tarso de Domingues, “O CIRE e a recuperação das sociedades comerciais em crise”, in Coleção de Estudos Instituto do Conhecimento AB, pg. 44 e ss, onde igualmente se faz referência aos acórdãos TJUE que se debruçaram sobre o tema – v.g. Ac. Karella e Karellas e Syndesmos Melon.
2 Ob. cit.
Via Verde para a modificação do capital social por deliberação dos credores, por Manuel Camarate Campos.
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