
A obtenção da nacionalidade portuguesa para unidos de facto luso-brasileiros
A obtenção da nacionalidade portuguesa para unidos de facto luso-brasileiros
Ultimamente, verifica-se um grande fluxo migratório do Brasil para Portugal, como se lê numa notícia publicada online pela CNN Brasil a 12/04/20221, com o título: “Número de brasileiros em Portugal nunca foi tão alto, segundo Embaixada Portuguesa”2. Neste mesmo sentido, em notícia publicada online pelo Diário de Notícias a 23/06/20223 , lê-se no título: “Quase 700 mil estrangeiros vivem em Portugal e 30% são brasileiros”4.
Esta situação conjuga-se com o aumento crescente de atribuição de nacionalidade portuguesa a cidadãos brasileiros, descendentes de portugueses (pais ou avós), com fundamento no artigo 1.º, número 1, alíneas c) e d) da Lei n.º 37/81, de 03 de outubro (Lei da Nacionalidade), sendo certo que parte destes cidadãos são casados ou unidos de facto com cidadãos brasileiros que não possuem ascendência portuguesa, e, ou pretendem vir morar em Portugal, ou já fixaram residência em Portugal com a família. Daí que, muitos dos pedidos de autorização de residência para brasileiros têm como fundamento o reagrupamento familiar.
Neste contexto, cada vez mais, na nossa vida profissional, tem-nos sido colocada a seguinte situação: Sou português(a), vivo há mais de 03 (três) anos em união de facto com uma cidadã(o) brasileira(o); moramos (ou queremos morar) em Portugal, sendo que, quando ainda morávamos no Brasil, reconhecemos esta nossa situação de união de facto através de uma escritura pública de união estável. Neste momento, a(o) minha(meu) companheira(o) possui autorização de residência por reagrupamento familiar, mas pretendemos que a(o) mesma(o) obtenha a nacionalidade portuguesa. Ouvi dizer que isto é possível.
Naturalmente, a resposta imediata é: se vivem em união de facto há mais de 03 (três) anos, nos termos da Lei da Nacionalidade, tal é possível. Contudo, no caso concreto, o processo para a aquisição da nacionalidade portuguesa (nacionalidade derivada) exige prévio reconhecimento dessa união.
Com efeito, nos termos do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade o estrangeiro casado, ou unido de facto, há mais de três anos com nacional português, pode adquirir a nacionalidade portuguesa. Contudo, há uma diferença substancial entre as duas situações: enquanto para o estrangeiro casado com nacional português basta cumprir aquele requisito temporal, efetuar a entrega da documentação exigível (incluindo, em especial, a certidão de casamento) e declarar, na constância do matrimónio, que quer ser português, para o estrangeiro que viva em união de facto com nacional português, além de dever cumprir todos os referidos requisitos, a lei exige que, previamente, o mesmo proponha, no tribunal cível, uma ação para ver essa situação reconhecida. Esta exigência encontra-se regulamentada nos números 2 e 4 do artigo 14.º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, que rezam o seguinte: “(…) 2 – O estrangeiro que coabite há mais de três anos com português em condições análogas às dos cônjuges, independentemente do sexo, se quiser adquirir a nacionalidade deve declará-lo, desde que tenha previamente obtido o reconhecimento judicial da situação de união de facto. (…) 4 – No caso previsto no n.º 2, a declaração é instruída com certidão da sentença judicial, com certidão do assento de nascimento do cidadão português, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do artigo 37.º, e com declaração deste, prestada há menos de três meses, que confirme a manutenção da união de facto.”.
O problema surge quando, para se obter o reconhecimento judicial da situação de união de facto, o casal pretenda fazer valer, em Portugal, o reconhecimento da união de facto, mediante a apresentação de uma escritura pública de união estável outorgada no Brasil há mais de 03 (três) anos. Isto porque, nem a lei substantiva é clara, nem a lei processual estabelece uma ação própria quando esteja em causa um documento com estas características, razão pela qual a jurisprudência não é pacífica quanto ao meio processual a ser utilizado para se obter o aludido reconhecimento.
Sinteticamente, parte da jurisprudência defende que é necessário propor uma ação declarativa de processo comum, com a finalidade de se obter tal reconhecimento, devendo nesta ação ser feita prova cabal da união de facto existente há mais de 03 (três) anos. Entre os fundamentos para defesa desta posição contam-se os seguintes: “1.-A ação de revisão e confirmação de sentença estrangeira, que tem por objeto uma escritura declarativa de união de facto, é meio processual inadequado para preenchimento do requisito legal previsto no Art. 3.º n.º 3 da Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81 de 3 de outubro), para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa, uma vez que aí se pressupõe que deve ser instaurada ação no tribunal cível de primeira instância, contra o Estado Português, num processo que pressupõe a demonstração judicial dos factos em que se estriba o pedido, com amplo contraditório, o que não se compagina com a finalidade e tramitação próprias do processo previsto nos Art.s 978.º e ss do C.P.C.. 2.–Estando em causa um mero de meio de prova sobre uma situação de facto a que a lei nacional, pontualmente, vai atribuindo determinados efeitos jurídicos, o documento – “escritura declaratória de união estável” –, vale por si só, enquanto meio de prova, não sendo finalidade típica da ação de revisão de sentença estrangeira o reconhecimento da autenticidade desse meio de prova.”5; “A declaração exarada numa “Escritura Pública de Declaração de União Estável”, perante uma autoridade administrativa estrangeira (tabelião) no sentido de que os outorgantes declaram viver em união de facto não se encontra abrangida pela previsão do artigo 978º nº 1, do CPC, não podendo ser revista e confirmada para produzir efeitos em Portugal.6”. Em suma, para esta parte da jurisprudência é necessário que, em ação própria, seja feita a averiguação da situação de união de facto “há mais de três anos com nacional português”, a qual constitui objeto de controlo judicial, subtraída, pois, à intervenção das autoridades administrativas e escapando à vontade das partes, o que significa dizer que a escritura pública de união estável é ineficaz para produzir, por si só, o efeito jurídico pretendido. Para reforçar esta posição, defende-se ainda que haveria um tratamento desigual entre os que não têm escritura de união estável e os que têm, pois estes estariam, necessariamente, obrigados a propor a ação cível em primeira instância para obter a referida declaração.
Diferentemente, e contradizendo os referidos argumentos, outra parte da jurisprudência defende que existindo escritura pública de união estável outorgada no Brasil, é possível ao casal lançar mão da ação de revisão e confirmação de sentença estrangeira, prevista no artigo 978.º e seguintes do Código de Processo Civil (CPC) (doravante, ação de revisão). Entre os fundamentos para defesa desta posição diametralmente oposta contam-se os seguintes: “I – A escritura pública, lavrada em cartório do registo civil situado no Brasil, que reconhece a “união estável e de endereço comum” entre uma pessoa com nacionalidade brasileira e outra com nacionalidade portuguesa, tem no ordenamento jurídico brasileiro força idêntica a uma sentença.7”; “O processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira dos arts. 978 e seguintes do CPC é aplicável também a actos relativos a direitos privados resultantes de um procedimento da ordem jurídica estrangeira em que esteja prevista uma qualquer intervenção de uma autoridade não jurisdicional (por exemplo, uma entidade administrativa ou religiosa) (…)8”; “Não releva, portanto, o modo ou a via como se chegou à produção desse acto, ou seja, se através duma emissão formal da vontade da entidade administrativa responsável pelo acto, ainda que de carácter meramente homologatório, ou se de maneira mais «contratual» apenas através das declarações dos outorgantes. Por outras palavras, basta que se trate de um acto caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido (cfr. artigo 1º da Convenção de Haia Sobre o Reconhecimento dos Divórcios e Separação de Pessoas, de 01/06/1970).9”; “«[o] critério a ter em conta para a sujeição ao processo de revisão assenta na natureza da decisão – importando avaliar se a “decisão” estrangeira produz efeitos idênticos ou equivalentes a uma decisão judicial propriamente dita –, mostrando-se não relevante o órgão de que emana, dado que cada Estado é livre em definir as matérias que cabem na competência dos tribunais, não se mostrando o respectivo critério uniforme em todos os Estados»10”.
Importa notar que, no Brasil, a união estável tem maior regulamentação e produz mais efeitos jurídicos do que em Portugal, inclusivamente são atribuídos direitos sucessórios a quem era unido de facto com o de cujus. Aliás, a união estável é expressamente reconhecida no § 3.º do artigo 266 da Constituição da República Federativa do Brasil, e no Código Civil brasileiro (artigos 1723.º a 1727.º – doravante, CC Brasileiro), que prevê os respetivos impedimentos (os mesmos do casamento, previstos no artigo 1521 do CC Brasileiro), direitos e deveres. Assim, à luz do referido regime, um Oficial de Registo só pode lavrar uma escritura pública de união estável se os unidos de facto demonstrarem, por um lado, que vivem em comum e, por outro lado, a inexistência dos mesmos impedimentos ao casamento. Mas, mais do que isto, a escritura pública de união estável é um instrumento de formalização do reconhecimento da existência da união de facto, podendo, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, ser alvo de registo11, sendo reconhecida, ao lado da sentença judicial, como instrumento de formalização da dissolução da união estável (artigos 732.º e 733.º do CPC brasileiro).
Assim, atendendo, sobretudo, às particularidades do ordenamento jurídico brasileiro, é defensável obter o seu reconhecimento por via da ação de revisão, atendendo que se trata de documento produzido com a intervenção de oficial público, que produz efeitos jurídicos relevantes segundo o ordenamento jurídico do Estado de origem, como se fora um tribunal. Atente-se ainda que, como admitem os Tribunais portugueses, no caso do Brasil, “a intervenção do oficial público terá uma repercussão performativa na ordem jurídica onde está prevista e onde foi praticada, significando essa intervenção mais do que o mero reforço da força probatória de uma determinada situação. O plus dessa intervenção não poderá residir na mera força probatória acrescida atribuída às declarações presenciadas pelo oficial público (cfr. o acórdão da Relação de Lisboa, de 21.11.2019, acima citado). É o que se passa, conforme acima descrito, com a celebração de escritura de união estável no Brasil.”12.
De mais a mais, não nos parece que a Lei da Nacionalidade, que é lei substantiva, e muito menos o Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, possam determinar o meio processual a utilizar. Os meios processuais hão de ser encontrados na lei processual. Também não nos parece justificável a propositura de uma ação de processo comum contra o Estado Português que, por sua natureza, tem uma tramitação mais complexa e morosa, apenas para se fazer prova de uma situação de facto, e também de direito, que já está devidamente provada e reconhecida em escritura pública outorgada com a intervenção do oficial público do país de origem, escritura esta suficiente para produzir efeitos jurídicos relevantes no ordenamento jurídico onde foi outorgada e, em Portugal. Até porque, mesmo que se pretenda atender à letra (controvertida) da Lei da Nacionalidade, apesar de a ação de revisão dever ser proposta perante o Tribunal da Relação, trata-se de uma ação propriamente dita, sujeita a um processo especial, que correrá, claro está, perante a secção cível do Tribunal da Relação; consequentemente, estar-se-á perante uma ação proposta perante um tribunal cível.
De qualquer modo, independentemente da posição jurisprudencial com a qual se concorde, o facto é que, neste momento, há uma incerteza jurídica inaceitável sobre que forma de processo deve ser utilizada para se obter o reconhecimento da união de facto, quando existe uma escritura pública de reconhecimento de união estável outorgada em país estrangeiro de harmonia com a lei nele vigente, sendo imperioso o legislador tomar posição quanto à matéria. Até porque, com o crescente fluxo migratório do Brasil para Portugal, a situação em causa será cada vez mais recorrente.
1 Notícia disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/numero-de-brasileiros-em-portugal-nunca-foi-tao-alto-segundo-embaixada-portuguesa/.
2 Na referida notícia lê-se que “As informações oficiais dão conta que a imigração de brasileiros no país europeu cresce há seis anos consecutivos e atingiu a marca de 211 mil pessoas em março de 2022.”.
3 Notícia disponível em https://www.dn.pt/sociedade/quase-700-mil-estrangeiros-vivem-em-portugal-e-30-sao-brasileiros-14961407.html.
4 Nesta matéria lê-se que “Segundo o SEF, os brasileiros mantêm-se como a principal comunidade estrangeira residente no país, representando no ano passado 29,8% do total, o valor mais elevado desde 2012. (…). [A] maior parte dos novos títulos foram atribuídos a brasileiros (39.456), seguindo-se os indianos (7.407) e Itália (5.302). “Os motivos mais relevantes na concessão de novos títulos de residência foram a atividade profissional (35.886), o reagrupamento familiar (20.718) e o estudo (10.919)”, lê-se no RIFA, salientando “a forte preponderância da atividade profissional nas nacionalidades oriundas da Ásia”.”
5 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09/11/2021, proc. n.º 1900/21.0YRLSB-7; no mesmo sentido, entre outros, vd ainda Acórdãos deste mesmo Tribunal de 25/10/2018, proc. n.º 25835/17.1T8LSB.L1-6, e de 21/12/2021, de 21/12/2021, e, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18/12-2018, proc. n.º 184/18.1YPRT. Todos os Acórdãos citados no texto podem ser consultados em www.dgsi.pt.
6 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/11/2020, proc. n.º 95/20.0YRPRT.S1.
7 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/01/2019, proc. n.º 896/18.0YRLSB.S1.
8 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/11/2019, proc. n.º 1429/19.6YRLSB-2.
9 Excerto do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/05/2013, processo 687/12.1YRLSB.S1, citado no Acórdão identificado na nota de rodapé antecedente.
10 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/11/2009, proc. 1072/09.8YRLSB-7. Também neste sentido, Acórdãos deste mesmo Tribunal de 25/06/2013, proc. 623/12.5YRLSB.S1, e de 12/07/2005, proc. n.º 05B1880.
11 Como estipulado pelo Conselho Nacional de Justiça em 07/07/2014, no Provimento n.º 37.
12 Como se lê no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/12/2021, proc. n.º 2200/21.0YRLSB-7.
A obtenção da nacionalidade portuguesa para unidos de facto luso-brasileiros, por Cristina Bogado Menezes.
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