
Falsas declarações e falsificação de documentos: crimes satélite com gravidade própria?

Falsas declarações e falsificação de documentos: crimes satélite com gravidade própria?
Os quadros de responsabilidades têm vindo a aumentar, naquilo que é um esforço legislativo presente de previsão de novos regimes sancionatórios. A necessidade de um compliance integral, adereçando modelos de cumprimento jurídico, é fundamental: porque entre prevenção de branqueamento de capitais, whistleblowing, prevenção da corrupção, aumento da responsabilidade das pessoas colectivas, e outros quadros de estipulação de obrigações legais, torna-se essencial que as entidades possam encontrar uma voz comum de tornar essas imposições em traços de conformação da sua própria cultura empresarial. Traços esses que se projectam internamente, na assunção de uma cultura de transparência e integridade, mas também externamente no mapeamento dos objectivos de desenvolvimento (para os outros) das próprias entidades.
Neste mundo aparentemente sofisticado da criminalidade económica é fácil esquecer ou relativizar aquilo que é a necessária consideração de ilícitos criminais “comuns” (lidos como tradicionais) que, no entanto, existem nestes quadros de criminalidade e que, muitas vezes, até, são encarados como crimes instrumento – auxiliares à práticas daquele outros crimes. Falamos, entre outros, dos crimes de falsas declarações e falsificação de documentos. Estes crimes, e aqui entendidos como crimes auxiliares, não terão, no entanto gravidade própria? E aqui gravidade num duplo sentido: entendida enquanto sinónimo de autonomia e relevância; e, claro, entendida enquanto quantum/medida de quão grave podem ser os comportamentos que, sobre a sua alçada (de previsão de comportamentos globais), acabam por ser punidos.
A partir de 20131 o crime de falsas declarações, previsto e punido pelo artigo 348.º-A do CP, passou a ter uma nova estrutura e desenho. Pratica este ilícito quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, sendo que a moldura penal pode ir até um ano ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal. É interessante verificar que este crime tem um âmbito mais alargado: deixa de se confinar apenas às declarações recebidas como meio de prova em processo judiciário, ou equivalente, passando a constituir ilícito criminal igualmente as falsas declarações que sejam prestadas perante autoridade pública ou funcionário público no exercício das suas funções e se destinem a produzir efeitos jurídicos.
Assim, qualquer pessoa que emita declaração ou ateste sobre algum dos factos referidos no tipo de ilícito criminal previsto, pode ser seu agente, mas o legislador limita os respectivos destinatários às categorias de intervenientes passivos referidos no art. 348º-A, ou seja: autoridade pública ou funcionário no exercício das suas funções, circunstância esta que gera uma especial força probatória para a declaração2.
Numa aplicação prática, no entanto, esta incriminação tem algumas fragilidades operativas. Existem alguns problema de tipicidade uma vez que o caminho amplo de tipificação é marcado por alguma indeterminação e tem suscitado algumas dúvidas sobre o âmbito de aplicação. Utilizam-se conceitos pouco explícitos e pouco acessíveis, não se determinando o seu significado jurídico – quais são os tipos de qualidades que se exigem à uma declaração? Que bens jurídicos são tutelados? Este pontos são de necessária precisão sob pena de processos punitivos desadequados, desnecessários ou desproporcionais, sendo que o tipo penal sempre beneficiaria da previsão de um aditamento de um elemento subjetivo específico.
Relativamente ao crime de falsificação ou contrafação de documentos, previsto no artigo 256.º do Código Penal, prevê-se que quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime: a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo; b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram; c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento; d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante; e) Usar documento a que se referem as situações anteriores; ou f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito; é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
Atenção que se os factos em causa disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267.º, o agente é punido com pena de prisão dentro de uma moldura reforçada de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias; e se esse factos forem praticados por funcionário, no exercício das suas funções, o agente é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
Este crime comporta diversas modalidades de conduta, como vimos3, sendo que no plano subjectivo exige o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade; bem como, ainda, o dolo específico, plasmado na intenção de causar prejuízo a terceiro, de obter para si ou outra para pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.
Aqui chegados, percebemos imediatamente que embora as molduras iniciais sejam limitadas, e sempre abaixo do limite referencial dos 05 anos, a verdade é que, especialmente no crime de falsificação, existe uma consideração do ordenamento pela protecção do bem jurídico. Assim se a sua gravidade – entendida como relevância e autonomia – parece estar limitada (1) pela previsão do modelo de moldura e (2) pelo seu carácter de crimes instrumentos/auxiliares, a verdade é que a projecção deste tipo de crimes acontece, precisamente, na sua capacidade de estar, sempre, no local errado, à hora errada. De facto, encarados como crimes facilitadores de outros tipos penais mais sofisticados, este crimes acabam por ter uma importância espectral na medida que, normalmente, estão acoplados a ilícitos criminais mais graves.
Se esta importância tarda a ser reconhecida – por todos os intervenientes jurídicos – parece certo que o legislador já começa, mesmo nesse espectro de criminalidade económica, a reconhecer a sua importância. Veja -se que a Lei 89/2017, de 21 de Agosto, referente ao regime jurídico do registo central do beneficiário efectivo, prevê, no seu artigo 38.º , a responsabilidade criminal e civil para Quem prestar falsas declarações para efeitos de registo do beneficiário efetivo, para além da responsabilidade criminal em que incorre, nos termos do artigo 348.º-A do Código Penal, responde civilmente pelos danos a que der causa.
Se este bad by association está a receber, como vimos, resposta de direito, é necessário que passos complementares sejam dados: reconhecendo a importância destes tipos de crime como facilitadores de comportamentos de criminalidade económica mais grave; reconhecendo a importância deste tipo de crimes para lá, precisamente, desses quadros.
1 Art. 4º da Lei n.º 19/2013.
2 Trata-se de um crime específico próprio, isto é, o ilícito exige uma especial qualidade do agente – a qualidade de declarante ou pessoa que atesta sobre algum dos elementos referidos no tipo legal.
3 a) fabricar documento falso; b) falsificar ou alterar documento; c) abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento; d) fazer constar falsamente facto juridicamente relevante; e) usar documento falso (nos termos referidos nas alíneas anteriores); f) facultar ou deter documento falsificado ou contrafeito.
Falsas declarações e falsificação de documentos: crimes satélite com gravidade própria?, por João Luz Soares.
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